Share

quinta-feira, 29 de abril de 2010

DIA DO SORRISO


As associações – e creio que encontrarei parceiros nisso, como sócios da mesma ideia – são um recurso primário e eficiente de aprendizagem, desde aquela idade em que, vendo uma cabeça descoberta, estando um chapéu ao lado, observada antes a união entre ambos, acredita-se que nasceram um para o outro, até, como uma espécie de Doutor Pangloss (sem o saberem que são), não percebendo, eventualmente, por um pessimismo que contradiz a essência daquele doutor, esperançoso ao extremo, outra função para a cabeça, desprezando o raciocínio, embora tenham chegado a essa conclusão justamente por causa dele, atribuindo-lhe existência tão-somente como o suporte indispensável para o perfeito equilíbrio dos chapéus, por mais que estes tenham-se tornado anacrônicos, tanto quanto nos remeter a uma fábula(!) voltaireana (sem animais, senão o homem, e com muita moral: “Il faut cultiver notre jardin”) para falar de mundos possíveis, e entre estes o melhor de todos, quando otimismos são negociados a preço baixo, em diversas versões, tentando assim agradar a públicos variados, chegando a cobrar alto por um que é exatamente o mesmo que é vendido por uma ninharia, mas devidamente “rotulado” como produto de luxo, reserva para quem tem savoir vivre.

Uma das mais corriqueiras associações é a que estabelece um elo permanente entre o sorriso e a alegria (de viver) estampada no rosto. Lágrimas até têm o direito a uma polissemia que as faz ora tristeza incontestável, ora felicidade quase insuportável. Mas sorrisos não – não aparentemente. Porque sorrisos também doem. E nem falo daqueles que, como priapismo cuja aparência é de uma potência de sonho(s) – e nem preciso dizer de que gênero de sonhos –, sem, contudo, terem sido levantados sobre a base dos desejos, são sorrisos demasiadamente prolongados, exigência talvez das convenções sociais, artifício para nada dizer, quando não se tem mesmo nada para dizer, mantendo-se como mero espectador sorridente, à custa da quase dormência dos músculos da cara, sonhando estes já em adormecerem, relaxados, até fingindo uma tristeza como forma de ginástica facial.

É verdade que se sorri, feliz, por mais circunstancial que seja esse estado, com mais facilidade, sem maiores exigências, do que se chora por uma tristeza, a menos que esta seja consequência de uma dor ainda maior. Porém, sorrir por princípio, por se acreditar no sorriso como filosofia de uma vida, otimista não patológico, porque se crê que, mesmo quando as coisas não são um convite à alegria, deve-se, ainda assim, sorrir, cobra caro: e o preço alto disso é, sorrindo de tudo, como quem não concebe mais um mundo sem açúcar, com muito doce, não poder mais perceber as ricas nuanças da língua, como alguém que, não cogitando do valor gustativo do amargo (que isso seria incompreensível para os “doces”), renega, como definitivamente acre, aquilo que já não corresponde a um indiscutível atrativo para formigas.

Chorar é resultado de uma atividade fisiológica. Sorrir parece ser apenas um recurso primário e eficiente (mesmo quando já se conhecem outros) para se demonstrar alegrias em geral, embora possa ser usado, para quem sabe como lançar mão disso, como refinada arte – inclusive para (a de) viver.

CHICO VIVAS

Read rest of entry

quarta-feira, 28 de abril de 2010

DIA DO CARTÃO POSTAL



O tempo se foi!...

Mas, até aí, morreu o Neves – seja lá quem tenha sido – ou a Inês é morta – um pouco mais, esta, conhecida por sua história tão rocambolesca, tão romanesca, tão inverossímil –, já que não é novidade para ninguém, nem mesmo para aqueles que vivem demasiadamente recolhidos, como se distantes do resto do mundo (embora tão intimamente perto do seu próprio mundinho, curiosamente, aqueles que parecem se dar ao luxuoso prazer, em sua humildade de retirado, de ver o tempo passar), que o tempo, esse mesmo que se disse aqui que se foi, sempre vai, sem adeuses úmidos, sem promessas de retorno – no que, aliás, é honesto, ainda que alguns preguem e outros esperem, como a um messias, pela volta do tempo, ora com a expectativa de uma nova chance, ora com uma esperança vingativa.

Houve um tempo em que nada parecia ir, ou o que ia era sempre o distante, verdadeira(!) fantasia de um lugar de correria(s) em que não se tinha tempo para (mais) nada, a não ser correr, já não se sabendo ao certo por que se corria tanto, podendo ser que, a certa altura, só se o fizesse pelo hábito, só se corresse pelo costume, porque todos corriam e, afinal, ninguém quer ficar para trás e chegar em último lugar. Nesse tempo, o mundo era visto a distância, em cartões-postais que traziam na frente paisagens sempre de sonhos, inacreditavelmente belas, alimentando assim o sonho de, um dia, se conhecer aquele lugar, enquanto que no verso, uma prosa rápida, notícias frescas (então não se tinha tanta pressa em substituir uma notícia por outra, sendo maior sua “expectativa de vida” do que hoje, notícias que hoje já nascem dando seu último suspiro, sem que isso se torne notícia, pois não há tempo, soterrada essa natimorta notícia por outra, às vezes, com mortos e feridos).

E havia aquela ponta de inveja: afinal, ninguém mandava um postal se estava ali ao lado. E essa inveja podia ser maior se quem enviava o cartão, como se dizendo “estive (ou estou) aqui”, dito isso no verso, fazendo com que o destinatário voltasse seus olhos para a frente já vista, só para ter certeza de onde aquele remetente então estava, fosse um vizinho, autor dessa gentileza postal, que se deu a esse luxo de viajar.

Ainda há quem colecione cartões-postais: e quanto a isso não há o que estranhar, pois se coleciona de tudo, não muito diferente do que as paisagens digitalizadas que se acumulam numa memória aparentemente mais confiável, embora, como a nossa, suscetível de “corrupção” (de dados). Nesse caso, porém, mesmo que a cada bela imagem de lugar visitado (alguns, tão-só, virtualmente: mas isso já não faz rigorosamente qualquer diferença) se anexe uma “tag” para facilitar as buscas, espécie de procura de uma agulha específica em meio a um agulheiro (só para dar uma folga ao palheiro), carecem essas paisagens justamente de verso: palavras apressadas – ainda que o capricho da caligrafia, se não revelava um tempo em que se cultivavam esses floreios, porque se tinha tempo para isso, levanta a suspeita de que são palavras muito bem pensadas – a contar as últimas, notícias de um tempo em que era possível, na volta da viagem, encontrar seus respectivos fatos ainda quentes, ou, ao menos, mornos o suficiente para se retomar o fio da meada.

“Que pena que você não está aqui: este lugar é lindo. Até a volta. Saudades!”


CHICO VIVAS

Read rest of entry

segunda-feira, 26 de abril de 2010

DIA DO GOLEIRO



O dono da bola, que deveria ser a bola da vez, o dono do pedaço, curiosamente – e eu não estou chutando –, é como um bola-murcha, tido por outros, os sem-bola, com condescendência fora do comum, como jogador tão-somente por ser dono já se sabe do quê, daquilo que, ausente, ainda que seja uma entre tantos jogadores, não há partida. E mesmo assim, porque condescendência tem limite, aceito, entre risinhos humilhantes, como goleiro: é pegar ou largar – trocadilho humilhante à parte.

É como se o goleiro estivesse longe de ser essencial, sendo não mais que um mero pegador de bola, só diferindo do gandula gorducho (que, sem ser dono da bola, contenta-se em ficar à margem do jogo) pela posição que ocupa, achando-se até o máximo por estar sob a trave, sentindo-se participante, mesmo que em seu íntimo, sem autocondescendência, diga para si que o espetáculo de verdade se passa na grande área, até no meio do campo, embora – a regra é clara – os momentos mais emocionantes sejam aqueles em que a bola, chutada como uma qualquer, passando de pé em pé como se fosse uma qualquer que passa de mão em mão, desloca-se, ameaçadoramente, em direção ao gol do adversário.

É (quase) mítico, cinematográfico com certeza, o medo do goleiro diante do pênalti, iminente gol, um instante, fugidio como todos, em que a vitória ou a derrota podem depender de um movimento, de um reflexo condicionado sem tempo para “se isso, se aquilo”, exigindo essa hora fatídica que se tome uma decisão, assumindo-se os louros ou os ônus.

Quando um goleiro não tem trabalho, passando quase toda a partida sem ser requisitado, tal qual se o jogo se passasse a léguas de sua trave, numa trama em que se enredou por ser o dono da bola e por, supostamente, ter metido os pés pelas mãos, ou o contrário, já que são elas que podem lhe dar fama, e não eles, mesmo que se tenha muito bem os próprios pés no chão, é sinal de que seu time está se saindo melhor, ainda que melhor em se defender do que, atacando de frente, em encarar o gol rival.

Possuindo a bola, damos as cartas. Mas, iletrados os jogadores, sobra-nos o papel de mero distribuidor, fazendo isso com tamanho zelo que se reserva o papel de goleiro, tendo chegado a isso não por se avaliar melhor nessa posição, mas, completado o elenco, por exclusão, porque os outros, ante a possibilidade de terem de agarrar a bola, dão de costas, preferindo, talvez mais chantagistas do que sinceros (e há os chantagistas sinceros), abandonar o campo, ainda que torcendo para que esse seu gesto dê início a uma batalha campal que só terminará com o confisco, em nome da paz, da bola e a expulsão, sem direito a um cartão de despedida ou a um rubor facial pelo complô armado, do seu dono – ex-dono, a essa altura do “campeonato”.

Agarrar a bola pode significar vitória a caminho. Dar tratos à bola pode ser um passo seguro rumo à loucura total. Não bater bem da bola pode ser a aceitação razoável de ser goleiro, sob o risco de, insistindo em outra posição, pelo abandono solidariamente tramado, acabar como a bola da vez – só que, dessa vez, chutado fora.

E um goleiro solitário é o máximo da exclusão.

CHICO VIVAS

Read rest of entry

sexta-feira, 23 de abril de 2010

DIA DE SÃO JORGE


Como já sou quase de outro tempo, parte da minha memória ficou por lá, embora tenha, por muito tempo, me acompanhado, mas, como que cansada, talvez chegando à conclusão de que eu não (lhe) era boa companhia, ou se decepcionando com minha vidinha pacata, quando esperava embates gloriosos, foi, com lentidão delicada – o que, a meu ver, otimista sem conserto, significa que ainda tinha certo apreço por mim –, me deixando para trás. Como de toda lembrança fugidia, restam-me fragmentos: alguns, verdadeiramente, amorosos.

Lembro-me, em léxico de outra geração, ouvir a palavra “capadócio” atirada, nem sempre na cara, mirando alguém por trás, com intuito ofensivo, sem saber, geograficamente limitado, quase que restrito às minhas fronteiras escassas, só não ínfimas por causa do meu “mundinho” de imaginação, que algum lugar, perdido na História, se chamava Capadócia, podendo ser, portanto, aquele anatematizado capadócio um mero natural do lugar.

E São Jorge, hem: talvez o maior de todos os capadócios! Padroeiro sem rival dos que vivem no mundo da lua, embora para muitos, especialmente para os que o têm como padroeiro, confiantes em suas graças, dizer isso seja uma loucura, não sendo Jorge louco de se haver com alienados, havendo um exército de devotos com a cabeça no lugar, ainda que com outras parte fora do contexto, motivo também pelo qual recorrem a ele, repetindo, como um mantra chamado de oração, que se vestirão sempre com as armas de Jorge, pensando, provavelmente, em se manterem, como um Aquiles (outro grande guerreiro) banhado inteiramente no Estige, sequer ficando de fora o citado calcanhar, invulneráveis às dores do mundo, quando, acredito eu, vestir as armas do santo, tal qual como as armas de Aquiles que só serviam quando usadas por ele, e não por qualquer outro guerreiro, é também fazer moda própria de sua coragem desafiadora.

Vestir-se de Jorge é mais que entrar numa fresca camiseta com estampa em que se sobressai o dragão (quem sabe se por suas cusparadas de fogo): é ter a coragem de defender seus princípios, mesmo quando, em volta, ninguém acredita. É mesmo, sem ser um teimoso irrecuperável, permanecer fiel a seus ideais, ainda quando os donos do mundo tentam (nos) convencer do contrário, até apenas como diversão, para testar até onde vai nossa resistência.

Armas que fazem com que o inimigo, tendo mãos, não as possa usar, tendo pés, não possam chegar lá, é a aceitação tácita de se autodiminuir, não se permitindo se elevar sobre o adversário, preferindo que este diminua, que fique sem mãos que agarrem, sem pés que corram, desde que os nossos – mãos e pés – sejam preservados, ainda que para nosso inimigo nós é que o sejamos (para ele): e se se tratar de mais um entre os inúmeros devotos de Jorge, a quem ele atenderá?

E olha que, padroeiro da Inglaterra, Portugal, Geórgia, Catalunha, Lituânia, Moscou (e Rio de Janeiro, oficiosamente), São Jorge tem muita gente na fila.

CHICO VIVAS

Read rest of entry

terça-feira, 20 de abril de 2010

DIA DO DISCO


Por vezes, mesmo quando se quer dar com os dentes nela, em afiada e incisiva decisão, a língua trava, sem que para isso seja(m) necessário(s) um tigre, dois tigres, três “trigues” sorrindo arrogantemente ao nos ver caindo seu sua felina armadilha. A língua como que, tal qual um teimoso convicto, teimoso por princípio, chegando, por conta disso, a teimar sem maior convicção, não sai do lugar: para voltar no tempo, entrando numa máquina de nostalgias, comporta-se como um disco arranhado, insistentemente na mesma faixa, havendo espaço de sobra para outras, verdadeira música para ouvidos que não aguentam mais a mesma cantilena, mesma cantilena, mesma cantilena...


Se os discos podiam ser quebrados, como quaisquer bolachas, desde as recém-saídas do forno (passando desse cálido útero de vinil para o inferno das críticas endiabradas) até as bolachas já quase mofadas, há tanto que esfriaram, hoje, assumem a estatura, por mais chatos que continuem sendo, de eternidade, recebendo cuidados antes não imaginados, temendo-se mesmo que a agulha, diamante sem maior valor, acabe por arranhar sua vaidade de long-play, ainda que seja justamente esse contato que lhes dê vida, que lhes dê voz, que faça com que alguém pare para lhes dar ouvidos.


Costuma-se atribuir certa venalidade a quem tem duas caras, como se estivesse sempre pronto a negociar com sua sinceridade, havendo cara para diversas situações, com olhares de lado, em atitudes zarolhas, que se multiplicam para gente assim. Já os discos mudam de lado com facilidade, e até se os louva por isso, ainda que se tome, provavelmente por respeito à hierarquia-de-cartilha, por obediência ao ABC, o lado A como convencional, mesmo que seja aí em que se encontrem as maiores novidades, enquanto se reserva ao lado B certa tolerada e bem-vinda rebeldia.


Trocando em miúdos, bem que eu poderia, num gesto carinhoso, tantas palavras guardar, amontoando-as ao lado das sobras de tudo que chamam lar, sem recorrer, portando faixa de saudoso, a um disco de Pixinguinha sim, que talvez ninguém mais se impressione com isso, estanhando mesmo tanto apego a um chorão de marca maior, tanto choro por tão pouco, por um chorinho pelos cantos.


Como um sonho-de-valsa, os discos já despertavam prazer, mudos ainda, vitrola com prato vazio, pronto para girar até a tontura (às vezes, numa tortura de dar dó), ao serem tirados, capa já ao lado, do invólucro (de) plástico, antes de chegar ao bombom principal. Com o tempo, como se foram as anáguas (ou mesmo as calcinhas de Kátia Flávia: puro Exocet), foi-se o invólucro, e os discos, prezados ainda, já não tinham, entre si e as rudezas interiores de uma capa exteriormente bonita, nenhuma proteção.


Desprotegidos, foram-se. Desprotegida a reprodução atual (autoral), reproduzida em malthusiana geometria, é coisa de perder a conta, contada em gigabyte. O que era grande, nessa incessante fábrica de “miudezas”, armarinho de miniaturas, concentrou-se, com vantagens sensíveis. Desvantagem, ao menos para a língua, é a inexpressividade de se chamar alguém, só por estar-se repetindo, de disco arranhado, alguém como eu, que insisto em não ceder...à síntese, sempre trocando o já pouco em muitos miúdos.


CHICO VIVAS

Read rest of entry

segunda-feira, 19 de abril de 2010

DIA DO ÍNDIO


De cara – limpa: nunca fui cara-pintada, maquiado, “lampeduzianamente” (se é que esse advérbio é possível), de Tancredi, num “Plus ça change plus c’est la même chose” –, não sei o apito que toco aqui, nem mesmo acolá. E de tão pouco musical, sendo para mim um extenuante desafio até batucar com os dedos numa mesa de bar em que ninguém está me ouvindo mesmo, sequer toco bem um apito, arriscando-me assim, se insisto em exibir dotes que não tenho, virtuosidade já viciada, a que ninguém me dê atenção; mesmo entrando com o apito na mão, arrisco-me a que ninguém me obedeça, ainda que ninguém mais possa tocá-lo.


De cara, não sou índio, embora, caído no mesmo caldeirão fervente das misturas, saído daí num caldo em que já não se reconhecem, individualmente, os ingredientes desse doce-DNA, deve haver algo de primitivamente selvagem em mim, assim a olhos que tomam por selva o que, narcisistas, não lhes surge como espelho, tanto quanto deve haver, ainda em mim, algo daquele ingênuo ridículo de, tendo acreditado na propaganda de uma moda que prega tudo misturar, me exibir de calção colorido (já cobrindo uma nudez envergonhada), camiseta de time de futebol (já cobrindo um peito sem ingenuidade natural), um boné de universidade americana, mesmo que não seja original (sabe Tupã cobrindo o quê: que se passa nessa cabeça?), ao mesmo tempo em que me mostro pintado, com uma maquiagem que transgride a noção “civilizada” de guerra, com sua pintura camuflada para, num mimetismo bélico, passar despercebido entre a folhagem da selva, escapando aos olhos inimigos: a pintura da hora é de um vermelho acentuado, de urucum sem rubor.


Para mim, qualquer desculpa (me) serve. Havendo motivo, por mais batido, por já quase esquecido, ponho-me a escrever, num transe sem bebida prévia. Para outros, para que me lê, isso deve ser, a qualquer dia, dia de índio, programa que poderia ser evitado sem que fosse preciso se pular o calendário das datas nacionais, apenas baseando-se em experiência passada, vislumbrando-se, já nas primeiras linhas, quando o apito ainda soa tímido, o que virá depois, apito à mão, sentindo-me dono dele, a ponto de tocá-lo de qualquer jeito, sem apurar o estilo, sem me preocupar com a harmonia, com a melodia, atendo-me, no máximo, a um ritmo rudimentar marcado por sopros regulares.


Meu dia, índio sem cocar, nasce com uma palavra – que nem precisa ser (dia de) “sol”. Minhas palavras – às vezes, arco no auge de sua tensão, noutras, flecha com intenção certeira, e que pode ficar só nas boas intenções, sem alcançar o alvo – não passam de “uma pena”: e se é possível reconhecer um índio com só uma, preferencialmente a lhe pontuar a cabeça, são mais reconhecidos os que, sem pena, desnudam aves coloridas às pencas. Minha pena não vai para as aves repentinamente desnudas, sequer para os índios extintos, mas tão-somente para a extinção das tintas que alimentavam as penas, restando só um fiozinho delas para um bico-de-pena que reproduz, com semelhança assustadora, um índio já sem contorno, um índio já com (tantos) limites, um índio com(o) reserva legal para a falta de outros motivos.


CHICO VIVAS

Read rest of entry

domingo, 18 de abril de 2010

DIA DO AMIGO





Dia do Amigo • Foi originalmente criado e patenteado por uma médica baiana, Dra. Kleyde Lopes, com o objetivo de que o mesmo não fosse confundido com o Dia da Amizade. Patente INPI n° 821860615.


Amigo, assim se canta na América, é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito...de um Milton Nascimento. Mas, e os que já têm no próprio Milton um amigo, onde será (porque “Que Será?” é coisa de outro amigo do Milton, e eu não sou exatamente esse Chico) que guardam?

Falando nisso – “porque palavras são palavras e a gente nem percebe o que disse sem querer” –, e o guarda de trânsito, e que não o é desde seu nascimento, podendo se chamar, por coincidência, Milton, um que sequer guarde de memória qualquer canção de uma América “fantástica”, talvez cantarolada em baixo-saxão, ou qualquer canção do Chico, e que nem me tem, a mim, como seu amigo, ele guarda seus próprios amigos no peito daquele Nascimento – que o é desde que nasceu – ou será que ele tem seu próprio lugar (quem sabe se no seu coração) para guardá-los, um lugar onde guarda não haja dizendo que é da lei se manter à esquerda, batendo no peito, ou às direitas, fincando pé nas regras concertadas?

Há quem ache providencial ter num guarda assim, em trânsito, um amigo, menos pensando em sua proteção em dias de muito sol na cabeça ou quando a chuva cai (e não uma chuva de amigos do peito), e bem mais para o caso de parar seu carro em local proibido, acreditando que por ser seu amigo (nessa hora, amigo daqui, do peito, ainda que acabe, mal-treinado em sinceridade, batendo do lado direito, portando, às avessas do coração, seja porque não conhece sua própria anatomia ou porque amigo assim só se guarda mesmo para casos de necessidade legal, não importando de que lado então se esteja), o guarda não andará, como se espera, às direitas, só para dar passagem a esse amigo, companheiros passageiros que nem sabem seu nome de cor, capazes que são de nos chamar de Zé, como se chama a um suposto amigo qualquer, não lembrando, se é que um dia deu ouvidos a isso, que nos chamamos Chico, nome tão comum como qualquer Zé, ou que somos, sem muitas nuanças, um Milton que, como outros, venham estes a ser guardas ou não, hão de ter ouvido lá pelos idos do seu nascimento uma canção...de ninar.

Mas, voltando(-nos) ao guarda, fazendo, aqui, retorno em local permitido, ele pode até fazer cara de poucos amigos diante dos que, na verdade, não o são (seus), para evitar que estes lhe chamem, com cara de quem fala com um velho amigo, de Zé (e vai que o guarda é mesmo um tanto José?!), ou à frente de um (re)conhecido amigo mantém sua postura, para deixar claro que, apesar de reconhecê-lo (sem precisar fechar os olhos para isso) no peito, no lado convencionado, como uma universal placa de trânsito, no esquerdo, tem de agir direito, como manda o figurino de guarda: mas vai que justamente nesse instante do encontro entre esses dois amigos – um tendo cometido uma falta e esperando compreensão do amigo-guarda, o outro guardando de memória todas as leis de trânsito –, compreendendo a expressão do amigo, porém, tendo de agir como desentendido, e vai ainda que no rádio do carro flagrado em falta esteja tocando, entre as muitas canções que se fazem na América, aquela que, como se abrisse o peito com notas bem “cantadas”, revela onde se guardam os amigos, vai que um dos dois, guarda (dos seus deveres) e contutor-em-erro (no seu autoatribuído legítimo direito de virar às avessas um amigo), se chame Milton, e que ambos se conheçam desde o nascimento, tendo até partilhado a mesma canção de ninar, adormecendo seguros de que mesmo assim, sem verem um palmo adiante, não haveria “choque”...

...E vai, e vem, e a canção toca e chega ao fim como se fosse... E lá vem outra (Que Será?), como se o mundo fosse um disco sem fim, não se sabendo ao certo quantas voltas ele pode dar...

Não será preciso abrir o peito do guarda (apesar dessa sua atividade estressante, atacado de todos os jeitos) para se descobrir o trânsito dos amigos no coração de um homem, independentemente do nome, do renome, do codinome (Beija-flor, meus amigos, já é outra ave nesta minha cantilena): amigos sempre têm trânsito livre – o que não os autoriza a infringirem as lei próprias a essa “estrada”.

Amigos têm direito garantido à compreensão (mútua), desde que isso não seja um pedido para se fechar os olhos (já não temos aquela confiança infantil na ausência de choques). Amigos, mesmo que tenham poucos de seus, fazem cara de muitos amigos, se precisamos da ilusão da quantidade e,ainda que tenham para si uma porção incontável deles, podem também fazer cara de poucos amigos, talvez até de apenas um, se tudo o que desejamos é a ilusão da unidade de uma cara feliz.

Guarda contigo... mesmo que já não recordes toda a letra dessa canção.

CHICO VIVAS

Read rest of entry

sexta-feira, 16 de abril de 2010

DIA DA VOZ


É cada vez mais frequente se ver pessoas falando sozinhas; e mais, como que conversando, num diálogo aparentemente impossível, pelo menos quando a compreensão do mundo é mediada pelos limites estreitos da nossa percepção. E poderia dizer até que além de vê-las assim, é possível mesmo ouvi-las, pois, ainda secundado por minha limitada percepção, elas carecem bem mais de ouvidos que lhes deem atenção do que propriamente de um interlocutor, ainda que um daqueles, cada vez mais raros, que jamais interrompem, a não ser quando, atores corretos, percebem a deixa: e não é difícil entender que todo interlocutor quer também sua dose (ah! o prazer das doses assim!) de atenção, estando provavelmente aí a raridade dos que pacientemente ouvem, e continuam só escutando, se o outro ator não se mostra, querendo mostrar-se demais, igualmente correto e não lhe dá a deixa – e esta pode ser sutilíssima, antecipando mesmo, com a entonação das palavras, o calar-se a vir.


É assim! Por mais que isso pareça uma loucura. E nem essa tecnologia auricular para conversas a distância, mãos então desimpedidas, é capaz de, com desculpa aceitável, encobrir de todo a necessidade crescente de se fazer ouvir, independentemente do que se tenha a dizer – que isso não é assim tão importante: sempre será, para quem diz, ainda que, ouvido o mesmo de um interlocutor, dê mostras, pouco sutis, da desimportância daquele fato; e sempre será assim porque quem age desse modo jamais dará o braço a torcer (mesmo que já não precise dele para, a distância, falar, falar, falar...), e assegurará, até a morte, que o que diz é de suma importância, e tudo isso para não ver ameaçada sua independência, atirando luzes sobre essa sua dependência da atenção alheia.


Não deixa de ser curioso e engraçado. É curioso, quando se tenta adivinhar, analfabeto nessas leituras labiais, o que diz aquele que passa por nós, entabulando uma animada conversa, sabe-se lá com quem, talvez mesmo fazendo todas as vozes de uma roda inteira de amigos a distância, com os quais há muito não fala, nem a distância, quem sabe se porque ao falar-lhes, de perto, fale demais, e queira para si toda a atenção, não admitindo, com olhos recriminadores, que lhe interrompam. É engraçado quando, além daqueles movimentos dos lábios, numa sintaxe esotérica demais para quem exercita mais a própria língua do que os olhos, deitando-os, nem que seja de vem em quando, sobre a necessidade dos outros, flagra-se também um sorriso; mais: acompanha-se o próprio nascer desse sorriso, o seu florescer (às vezes, o sorriso morre aí, sem chegar a muito viver), até, e isso é o mais engraçado, atingir aquele estado de maturidade que o transforma quase numa gargalhada, a tempo contida, para não transparecer um descontrole que não combina mais com esse estado.


É possível que algum dia tenhamos imaginado que a tecnologia que une, a distância, mas não une as distâncias numa única proximidade, fosse capaz de suprir a falta de atenção que julgamos sentir. O que se vê (e quase se ouve) é que ela serve, no máximo, como uma boa desculpa para diálogos solitários – como este, meu, à mão livre!


CHICO VIVAS


Read rest of entry
 
Related Posts with Thumbnails

Seguidores

My Blog List

Marcadores

Abrir o coração (1) Adulto (1) Ajuste de contas (1) Alfaiate (1) Alienação do trabalho (1) Alimentação (1) Alimento (1) Amante (1) Amigo (1) Amizade (2) Amor em cada porto (1) Anjo (1) Anjo exterminador (1) Anjo-da-guarda (1) Apertar o cinto (1) Aquiles (1) Arquitetura (1) Arrmesso de cigarro (1) Arte (1) Astronauta (1) Atriz (1) Bailarina (1) Balconista (1) Balzac (2) Banana (1) Barroco (1) Bernard Henri-Levy (1) Boa forma (1) Bolo de dinheiro (1) Bombeiro (1) Bondade (1) Botões (1) Brás Cubas (1) Cachorro sem dono (1) Caetano Veloso (1) Café (1) Café com açúcar (1) Café puro (1) Caminhos desconhecidos (1) Cão (1) Capadócia (1) Capadócio (1) Cara de anjo (1) Caridade (1) Carmem Miranda (1) Carta (1) Carta na manga (1) Cartão-postal (1) Cartas (1) Carteiro (1) Cartógrafo (1) Casados (1) Caso Dreyfuss (1) Cauby Peixoto (1) Cecília Meireles (1) Celulares (1) Chaplin (1) Chuva (1) Circo (2) Cliente (1) Coelho na cartola (1) Comida (1) Compositor (1) Compulsão (1) Construção (1) Consumo (1) Conteúdo adulto (1) Coração (1) Cordialidade (1) Coreografia (1) Corte-e-costura (1) Criação do mundo (1) Criatividade (1) Criativos (1) Cruz (1) Culto ao corpo (1) Cura (2) Cura da Aldeia (1) Dança (1) Datilografia (1) Datilógrafo (1) Democracia (1) Deus (1) Dia da Abolição da Escravatura (1) Dia da alimentação (1) Dia da amante (1) Dia da amizade (1) Dia da árvore (1) Dia da bailarina (1) Dia da banana (1) Dia da caridade (1) Dia da chuva (1) Dia da criança (1) Dia da criatividade (1) Dia da cruz (1) Dia da democracia (1) Dia da família (1) Dia da fotografia (1) Dia da infância (1) Dia da lembrança (1) Dia da liberdade de imprensa (1) Dia da Língua Portuguesa (1) Dia da mentira (1) Dia da pizza (1) Dia da Poesia (1) Dia da preguiça (1) Dia da propaganda (1) Dia da telefonista (1) Dia da tia solteirona (1) Dia da velocidade (1) Dia da vitória (1) Dia da voz (1) Dia das mães (3) Dia das saudações (1) Dia de Natal (1) Dia de Santo Antônio (1) Dia de São João (1) Dia de São Jorge (1) Dia do adulto (1) Dia do alfaiate (1) Dia do amigo (2) Dia do anjo-da-guarda (1) Dia do Arquiteto (1) Dia do artista plástico (1) Dia do astronauta (1) Dia do ator (1) Dia do balconista (1) Dia do bombeiro (1) Dia do café (1) Dia do cão (1) Dia do cardiologista (1) Dia do cartão-postal (1) Dia do carteiro (1) Dia do cartógrafo (1) Dia do circo (1) Dia do cliente (1) Dia do compositor (1) Dia do contador (1) Dia do datilógrafo (1) Dia do dinheiro (1) Dia do disco (1) Dia do encanador (1) Dia do escritor (2) Dia do esporte (1) Dia do estudante (1) Dia do filósofo (1) Dia do fotógrafo (1) Dia do goleiro. Dono da bola (1) Dia do intelectual (1) Dia do inventor (1) Dia do leitor (1) Dia do mágico (1) Dia do mar (1) Dia do marinheiro (1) Dia do Museólogo (1) Dia do nutricionista (1) Dia do órfão (1) Dia do palhaço (1) Dia do panificador (1) Dia do Pároco (1) Dia do pescador (1) Dia do poeta (1) Dia do pombo da paz (1) Dia do professor (1) Dia do profissional de Educação Física (1) Dia do silêncio (1) Dia do soldado (1) Dia do solteiro (1) Dia do sorriso (1) Dia do telefone (1) Dia do trabalho (2) Dia do tradutor (1) Dia do trigo (1) Dia do vendedor de livros (1) Dia do vidraceiro (1) Dia do vizinho (1) Dia dos Pais (1) Dia mundial do rock (1) Dia Universal de Deus (1) Dinheiro (1) Doença (1) Doistoiévski (1) Ecologia (1) Encanador (1) Enigmas (1) Entrando pelo cano. Desencanar (1) Escravo da palavra (1) Escrever (1) Escritor (2) Espécie em extinção (1) Esporte (1) Esquecimento (1) Estado civil (1) Eterno estudante (1) Família Desagregação familiar (1) Fardos (2) Fernando Pessoa (1) Filosofia (2) Filósofo (1) Florbela Espanca (1) Fogueira (1) Fogueira das Vaidades (1) Fome (1) Fonte dos desejos (1) Fotografia (1) Fotógrafo (1) França (1) Freguês (1) Ganhar o pão com o próprio suor (1) Gentiliza (1) Gianlorenzo Bernini (1) Gourmand (1) Gourmet (1) Graciliano Ramos (1) Grandes autores (1) Guerra (2) Guimarães Rosa (1) Hércules (1) Ideal de paz (1) Ideia pronta (1) Imaginação (1) Imprensa (1) Imprensa livre (1) Infância (2) Infância perdida (2) Ingmar Bergman (1) Intelectual (1) Invenção (1) Inventor (1) Irmãos Karamázovi (1) Isaurinha Garcia (1) Jardim das Cerejeiras (1) Jesus (1) Jogo de palavras (1) José (1) Juventude (1) Lado bom das coisas (1) Lágrima (1) Leitor (1) Lembrança (1) Ler a si mesmo (1) Letra e música (1) Levantamento de copo (1) Liberdade (2) Liberdade de expressão (1) Liberdade de pensamento (1) Língua (1) Língua Portuguesa (1) Livros (1) Loucura (1) Luta (1) Machado de Assis (1) Mãe (2) Magia (1) Mágico (1) Mal-traçadas linhas (1) Mania de perseguição (1) Mapas (1) Máquina de escrever (1) Mar (1) Marcel Proust (1) Maria (1) Marinheiro (1) Medicina (1) Médico (1) Médico de alma (1) Memória (1) Memórias (1) Mentira (1) Mesa (1) Metamorfose ambulante (1) Mistérios (1) Misticismo (1) Morte (1) Mundo da lua (1) Museu (1) Natal (1) Navegação (1) Navegação é preciso (1) Nêga (1) Negro (1) O Êxtase de Santa Tereza de Bernini (1) O Garoto (1) Órfão (1) Os doze trabalhos de Hércules (1) Pai (1) Palavras (1) Palhaço (1) Pão (2) Pão de cada dia (1) Paradoxo de Zenão (1) Pároco (1) Paz (1) Peito aberto (2) Pensamento (1) Pescador de homens (1) Pescador de ideia (1) Picco de la Mirandola (1) Pizza (1) Poesia (2) Poeta (1) Pombo da paz (1) Praga de mãe (1) Preço de banana (1) Preguiça (1) Professor (1) Propaganda (1) Propaganda é a alma do negócio (1) Psicologia (1) Razão (1) Realidade (1) Referências bíblicas (1) Religião (1) Rock (1) Rock and roll (1) Sabedoria (1) Saber (1) Santa Tereza de Ávila (1) Santo Antônio (1) São Jorge (1) São Miguel (1) São Paulo aos Coríntios (1) Satisfação (1) Saudação (1) Saudade (1) Shakespeare (1) Soldado (1) Solidão (1) Solteiro (1) Solteirona (1) Sorriso (1) Tântalo (1) Tcheckov (1) Telefone (1) Telefonista (1) Tempo (1) Tereza de Ávila (1) Tirania (1) Toques de celular (1) Torre de Babel (1) Trabalhador em teatro (1) Tradutor (1) Trigo (1) Trocadilho (1) Truque (1) Tudo acaba em pizza (1) Velhice (1) Velocidade (1) Vendedor (1) Vendedor de livros (1) Verdades (1) Victor Hugo. Oscar Wilde (1) Vida (1) Vida amarga (1) Vidraceiro (1) Vidro (1) Vizinhança (1) Vizinho (1)