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sexta-feira, 21 de maio de 2010

DIA DE SANTA RITA


A que nunca foi santa – claro! – nem se chamava mesmo Rita. Outra se chamava, assim ignorada, Margarita, aquela que tinha cabelo nas ventas, com certa malandragem, necessária para a própria sobrevivência, e usando luvas três-quartos. Mas, deixando de lado toda esta ladainha, antes que ouça um “ora pro nobis” a revelar enfado, não se vendo a hora de tudo isto chegar ao fim, apelando-se – o que já demonstra o grau de desespero que desperto – para a padroeira das causas impossíveis, Rita, santa desde sempre, levando isso vida afora como destino ou como estigma, adia sua entrada na vida religiosa, cumprindo antes os papéis que lhe estavam reservados sem, contudo, uma consulta prévia a sua vontade, admitindo-se, sem qualquer possibilidade de contestação, que essa era a vida de toda mulher, que, inclusive, uma mulher não se sentiria plenamente assim se sem marido, sem filhos, mártires que muitas se tornam com um “sim” sob as barbas (brancas?) do Pai, naquela romântica esperança (se houver uma que não o seja) de que as coisas impossíveis, quando compartilhadas com quem se ama, tornam-se possíveis por uma suposta união de forças.

De Cássia, com seus desesperos próprios, tantos calados, para o mundo, para um mundo de impossibilidades à espera de uma padroeira, patronesse dessas causas, indiscutível referência pelo espinho, como pedra destacada de uma coroa “cravejada”, importado do alto, cravando-se em sua testa: a (outra) Rita, do Ziegfeld Follies, por si, um mundo à parte, para Hollywood, o mesmo, então, que o próprio mundo, talvez mesmo um pouco mais, porque se o mundo foi capaz de inventar Hollywood, esta inventou muitos, inclusive “outros mundos”, com um poder de convencimento capaz de fazer se descrer do mundo visível, irreal e fantasioso quando comparado àquele outro, fantasia de celuloide, irrealidade em movimento.

Falando nisso, o "Despertar de Rita" (de qualquer uma), de uma que se chame Margarita, ou Marilyn (que sequer se chamava assim), ou tenha que nome for, não é sempre o róseo desabrochar de um coração para um novo mundo, feérico e de portas abertas, não sendo isso uma garantia de eternas boas-vindas, embora comumente pensemos que o entrar de verdade na vida é a possibilidade (com ou sem a interferência da Santa, mais provavelmente sem) de se adentrar inferninhos, sem culpa, com todo prazer, quando, na verdade (em verdade, em verdade, eu vos digo, logo eu que, apesar do nome promissor, jamais serei santo), despertar para a vida é fazer com esta o que se quer, até onde o desejo próprio, unilateral, é capaz de ir, independentemente de se querer viver uma história que mais tarde inspirará um filme realista, ou uma biografia ficcionalizada, ou uma hagiografia confiável (porque baseada mais na fé).

Ali, onde o cravo penetrou a Santa, marcando-a iconograficamente para sempre, a atriz, com fios em excesso na testa, teve-os, sem dó nem piedade, arrancados, um a um, para melhor se construir uma mulher, uma como nunca houve outra igual. A santa permanece na (nossa) memória; a Hayworth sucumbiu precocemente à demência. Ambas, com a fé que se lhes queira devotar, fizeram história, fizeram, indiscutivelmente, sua própria história, com renúncias e avanços, como se faz qualquer uma (história, mulher, gente que fica na memória): e esse talvez seja o único despertar...possível.


CHICO VIVAS

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sábado, 15 de maio de 2010

DIA DA FAMÍLIA






Clichê é como aquele tal (do) “pretinho básico”, peça dita fundamental no guarda-roupa feminino (o masculino é mais monocromático), servindo inclusive, o que não é sua função primordial, como trocadilho de caráter sexo-racista. Mesmo que nem sempre requisitado, como súdito que não se atreve a reclamar, está permanentemente pronto a se oferecer como alternativa à falta de variedade do armário ou à falta de tempo em se manter indefinidamente indeciso(a): mas é mais fácil se livrar dos espelhos, sem precisar correr o risco duplo de, quebrando-o, ferir-se e ainda arranjar anos de azar, do que de outros (olhos-)espelho(s).

Pretinho básico nas conversas ligeiras sobre a “decadência da sociedade”, argumento usado não é de hoje, a destruição da família (num singular institucional) parece explicar todo esse desmoronamento moral, dizendo-se isso com ar saudoso dos tempos em que família era coisa de respeito, dizendo isso quem, em sua própria geração, já observava tal desfazimento(!) familiar, sem ter conhecido outra família, a não ser de ouvir falar, em repetidos clichês.

E como eram, afinal, essas famílias (de antanho, para bem lembrar de que tempo elas, supostamente, eram)?

Era um pai, sumo-provedor, único mantenedor dessa instituição (embora, com poesia discutível, se dissesse que cabia à mãe o verdadeiro equilíbrio emocional dos seus membros, desde que ela aceitasse, em troca dessa faixa de rainha, a submissão de quase serva), pai que era autoridade máxima dentro de casa, mesmo quando, fora, era um subalterno não apenas obediente às normas de uma hierarquia sádica, como inflamado defensor do seu direito de bem servir, orgulhando-se mesmo de ser assim, sublimando tudo isso, sem recalques, num lar conduzido com rédeas curtas: às vezes, única ligação entre o mundo (por mais restrito que esse conceito fosse então, mundo circunscrito mesmo aos exíguos limites de um bairro qualquer) e a casa, voz respeitável em todos os assuntos, vistos, quase sempre, de relance nas manchetes penduradas nos varais das bancas de jornais.

Era também uma mãe, figura opaca em torno da qual havia um halo de bondade sem fim (poucos, como Graciliano Ramos, pôde dizer, da sua, sabe-se lá se usando da arte para uma catarse familiar, que era ranzinza, com uma cabeça que lembrava caneca cheia de mossas), recurso mariano que obscurecia sua pedagogia do chicote, sendo que o legítimo direito humano de fugir ao castigo significava um agravamento da pena, como em qualquer prisão. Com nada ou pouco de seu, mesmo que tenha chegado àquele lar cheia de bens, a não ser o “bem maior” para toda mãe, os filhos: quanto ao marido, meu bem, não raro, porque era homem, tinha outra mulher, mantida por debaixo dos panos mais transparentes deste mundo.

Eram ainda os filhos – em alguns casos, filhos sem conta – que não ousavam levantar a voz, em particular para o pai (no íntimo, talvez gritasse seus ressentimentos), sempre ameaçado pelo descumprimento de um mandamento divino, embora temor maior, por mais inconsciente, residisse mesmo na possibilidade de, preço alto pago pela voz elevada, ser posto para fora de casa, só retornando, filho pródigo com rabinho entre as pernas, prato-cheio para a confirmação das pragas divinas, ou como um filho que encontrou nessa expulsão a chance de ser bem-sucedido, tornando-se, a essa altura, figura maior do que o pai, querendo, com pedido de bênção insincera, mostrar, nesse retorno, quão alto chegou, oportunidade para o pai, teimosamente querendo manter elevada sua cabeça que, pela idade, já vai naturalmente se curvando, enfim, perdoá-lo com um “Deus te abençoe, meu filho” dito com uma honestidade tardia, para o doce naufrágio, em suas próprias águas, dos olhos maternos – mãe que, nesse instante, atinge o máximo daquele halo: Ave, Maria!

Se o pretinho básico se mostra eficiente, até mais, atraindo olhares e elogiosos comentários pelo bom gosto na escolha do figurino, por que não podemos continuar culpando o desmoronamento da família por todas as infelicidades deste fim dos tempos?

CHICO VIVAS
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quinta-feira, 13 de maio de 2010

DIA DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA





"A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, triou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles"

Gilberto Freyre


Quem me dera uma negra, escravo eu dessa fantasia fora do tempo, embora persista ainda a servidão que nem procura mais justificativa na cor para, arrancada talvez à sua família, formada na informalidade de espaços cuja exiguidade favorece a promiscuidade, estreita liberdade (que por dentro, ela sempre exista, embora seja do lado de fora que os grilhões mostrem sua ferocidade), acalentar ao seio um sinhozinho de colo e passar da sua língua, de um estrangeiro continente, o conteúdo amaciado de palavras mastigadas para lhes subtrair a dureza original, pelo acréscimo de uma saliva emoliente: e que importa se, crescido, crendo-se já senhor não só de si mesmo, mas de todos os escravos que herda (que ...erda!), requer, com base num direito que acredita de todo natural, o peito das negras jovens, ou então já não reconhece como leito pretérito o regaço em frangalhos de hoje?!

Como eu queria, ao preço até de abrir mão de alguma coisa da minha própria liberdade de tudo querer, querer tudo, escravizar-me a uma boca que transmitisse à minha língua, cada vez mais áspera, uma rudeza que alguns julgam apanágio da raça, numa leitura apressadíssima do que sejam as complexidades de um povo! Como queria que da minha cabeça saíssem palavras de pedra, desde que, ao falá-las, já tivessem passado por uma língua amaciadora! E essa “negra” bem pode ser, sob o risco de me mostrar já algo cor-de-rosa, esse coração que se pinta de vermelho, menos por uma verossimilhança com a fisiologia de bomba em constante explosão de sangue, e mais por se assemelhar a essa cor carregada de rubor típico das paixões.

Assim, entre a cabeça, fonte de todas as pedras, até a língua, deságue de todas as palavras, mesmo das mais caladas, estas pulando para a mão, transferindo para a tinta, que pode ser vermelha como sangue, indelével como paixões, essa sua taciturnidade, haveria, obrigatoriamente, uma parada no coração, sem ameaça à vida, sequer com uma pontada sintomática. Aí, minha nêga, escrava à sua própria revelia (porque há, sim, os que se deixam escravizar, por pura paixão), o que parecia ser (indissoluvelmente) sólido, desmancha-se, “atacado”, no coração mole, por um exército decidido a emprestar a palavras tão concretas um certo ar rarefeito, aerado doce que não pesa na boca, embora essa sua leveza engane, ao precipitar o apetite, levando a um consumo exagerado de um discurso adocicado, a ponte de, então, se desejar, ardentemente, uma palavra mais picante que equilibre tanta doçura saída do peito.

Se estas, aqui, são as tais duras palavras que me escapam ora da cabeça, ou se já são, roladas nas pedras de lá, com a fúria de um rock’n roll sem condescendência, o resultado daquela “operação cardíaca” que as faz algodão-doce, eu não sei. Sequer sei se, ao escrevê-las, eu o faço para recuperar o som perdido na mudez da língua ou se, ao deixar a mão intervir aí, nessa escritura-escravatura da qual nunca serei senhor, nem mesmo um sinhozinho com tanto engenho, as palavras dão voz a um coração calado, colado ao peito como um eternamente faminto bebê de colo.

CHICO VIVAS

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domingo, 9 de maio de 2010

DIA DAS MÃES


O lugar, embora já um tanto geograficamente distante, diante do sofrimento deixado para trás, com essa vã esperança (essa van de esperança(s)) de que tivesse mesmo se perdido no passado, por mais próximo que este ainda se mantivesse, perigosamente, do presente, um sofrer já pretérito, surgia, a olhos que buscavam, com desespero, um alívio imediato – porque, nessa hora, pensar no futuro, mesmo que do pretérito, é puro desperdício de tempo –, como um promissor paraíso, confundindo, nos olhos dessas mães, presas quase que ontologicamente fáceis de propagandas “sofríveis”, as lágrimas de dor, espécie de fim de carreira de um rio até então caudaloso, com as lágrimas de alegria por, enfim, se aportar num cais seco: e a ironia, tendo como autoras as próprias mães (e não mães da própria ironia), é que o lugar, batizado ainda em meio a lágrimas, com a água e o sal do rito, se chamava...Paraíso. Ser mãe, portanto...

Que tal lugar fique num vale é de pouca importância, um detalhe topográfico que não altera o mapa. No entanto, que esse vale, não se sabendo mais, porque já demasiadamente recuado no tempo quem assim o nomeou, se chame Vale de Lágrimas é de despertar a curiosidade. Será que há aí um fio d’água, tênue e tímido, quase que lágrimas envergonhadas de se verterem em público, e que, mais à frente, encorpando-se a cada passo, se transformará num rio, daqueles que, de tão caudalosos, se prestam à associação fácil com sofrimentos correntes, com dores perenes? Ou será que rio algum há nesse lugar, servindo, por isso, de motivo de graça para os que, com água farta e à porta, dizem que tal vale não presta, que não vale nada?

Não é de agora que o lugar é reserva quase que exclusiva das mães, defendido por muitas com as mesmas unhas e com os mesmos dentes que certa poesia antropológica costuma assegurar que elas mostram quando da defesa das crias. Não sendo de agora, é, certamente, assim já há gerações de mães, de mães de mães, avós que não perdem o título de mães (para garantir sua gleba nesse Vale), como se se apegassem, por esse nome, a um título de propriedade, com direito, em que pesem as alegrias (algumas tão insólitas que se desmancham, sem solidez, no ar), a sua própria cota de sofrimento(s) nesse Paraíso.

Diga-se, em defesa das exceções, que uma ou outra mãe (há homens nesse lugar: afinal, são eles que “garantem as mães”, mesmo quando elas é que são o arrimo da família), tomada de súbita alegria, crendo-a duradoura, lançou a ideia de se rebatizar o lugar, tirando as lágrimas do vale: ideia recusada com veemência pela maioria das mães, seja em nome da tradição, seja em defesa de um clichê sempre à mão.

Ninguém, contudo, foi capaz de sugerir a troca do Paraíso, por mais que sua fantasia de um lugar digno de se chamar assim contrastasse com a paisagem circundante: e a razão, tácita, calada no íntimo de cada um(a), era a de que, não se chamando Paraíso, como iria se chamar esse lugar?

Hoje, as mães daí – avós, bisavós, todas para sempre mães – lamentam, fazendo isso com propriedade, que as novas almejem viver em outros lugares, mesmo que ainda desejem, no coração sem tempo de mulheres modernas, um paraíso de anúncio imobiliário, desde que não se chame de Vale de Lágrimas – e se há lugares assim, com nome tão, aparentemente, pouco comercial, é porque os espertos especuladores conhecem bem o mercado, sabendo da demanda, por vezes, reprimida.

As novas mães – se é possível atualizar algo tão concertado com a atemporalidade –, mães que sequer se veem com avós, menos ainda como bisavós, por mais que se cerquem de precauções para uma vida longa, calculam se vale a pena trocar um paraíso pago em trinta anos, ainda elas aos trinta, por uma maternidade que tem entre suas alegrias a de (faltando argumentos e palavras) sofrer: num Paraíso ou num Vale que já se sabe de quê.

CHICO VIVAS

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sábado, 8 de maio de 2010

DIA DO ARTISTA PLÁSTICO



Um dia, foi o vidro, símbolo de transparência, cometendo-se assim o duplo erro de não se levar em conta o quanto um vidro pode ser honestamente opaco, sendo mesmo por cálculo ou como consequência, nem sempre bem calculada, do desgaste de uma prolongada exposição, e errando-se ainda ao se supervalorizar a transparência, como se fosse virtude capital traduzir, de cara, todo seu íntimo na face, como se o velado (assim até que se resolva revelá-lo) emprestasse a alguém um caráter duvidoso, crendo-se, portanto, ser melhor exibir tudo, mesmo os vícios, sem dar-se o tempo necessário para que, escondido ainda, mas mantido sob vigilância, o vício possa se ultrapassado.

Depois, creio, foi a vez do papel, exercendo quase que com supremacia seu papel, até obscurecendo os vidros, fazendo com que estes experimentassem repentina opacidade, espécie de ostracismo compulsório. Mas o papel tem contra si a imagem (ainda que ela rigorosamente não haja) de folha em branco, ícone de uma candidez vazia e, sobretudo, covarde, na medida em que se prefira sustentar a brancura do papel, em nome de uma cândida reputação, a lhe inserir tentativas e erros, receosos nem tantos dos (próprios) erros, e sim do estado da folha, necessário que se fará usar uma borracha, sabendo-se o quanto de arte (uma arte naïve, daquela que os mais arrogantemente ingênuos costumam dizer que qualquer criança faria melhor) é exigido para se usar bem uma borracha.

Enfim, o plástico. E chegou pisando nos vidros, sem temor de cortes, machucando os papéis, sem medo de magoá-los. Reinando absoluto, deixou à margem os vidros que, algo amedrontados, recuaram nas prateleiras ou se homiziaram, com argumentos elitistas, nas gôndolas de conveniência dos poucos mais abastados. Quem reina assim acaba por, com o tempo, atrair inimigos. De repente, como um poço de petróleo que “explode” em jatos promissores, pipocaram, aos milhões, os inimigos do plástico, para deleite dos vidros (e dos vidros de doce de leite), para deleite do papel (encaixando-se aí o leite), acusando os plásticos de viverem quase uma eternidade, enquanto, a seu próprio favor, os vidros são recuperáveis, e os papéis são recicláveis.

Todo artista(-)plástico é (de) vidro, tendo de conviver ora com a transparência do íntimo que se espraia em telas, argila, ou outros materiais, mesmo que a outros olhos tal obra permaneça de uma opacidade desafiadora, ora com o opaco calculado, mas que encontra tradução transparente na ingenuidade de olhos-criança ou na equivocada leitura de adultos olhos que não admitem não “compreender” uma obra.

Todo artista(-)plástico é (de) papel, seja nos (seus) amassados que são transpostos, conscientemente ou não, para seus trabalhos, seja no planejado vazio da folha, espaço aberto para uma obra-em-progresso, mesmo que esse seu aparente não-acabar-mais tenha tido um ponto final.

Alguns artistas são (de) plástico moldável, aceitando (re)formas, outros (de) plástico não maleável, apegados demais a um eventual reinado absoluto, desprezando as críticas, sem perceberem que o ideal de eternidade (que nem o plástico, por mais longevo, conhece) se deve restringir à obra. Vivendo esta, o artista é (plástico) necessário. Vivendo o artista, muitas vezes, a obra é vidro que se quebra, papel que se rompe, plástico que tem contra si o futuro do planeta.

CHICO VIVAS


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sexta-feira, 7 de maio de 2010

DIA DO SILÊNCIO



Psiu!...

Os mal-entendidos, espertos como só eles, aproveitam-se de qualquer brecha para, como quem não quer nada, pôr as manguinhas de fora, surgindo tanto depois de muitas palavras, sendo conhecido, por tantos provérbios, o princípio de que quanto mais se fala, mais se erra, mais se dá bom-dia a equinos, mais se engolem moscas, quanto há mal-entendidos que medram no silêncio, lançando mão desse terreno aparentemente sem dono (ou com donos sim, mas que se mantêm silenciosos, não rompendo o silêncio, muitas vezes, sequer para defender seu terreno, até porque seria curiosamente divertido ver um silencioso assim, convicto, irrompendo em palavras tantas para, com unhas e dentes, principalmente com dentes, pela proximidade da língua, garantir a posse do (seu) legítimo silêncio): isso tudo sem falarmos daqueles que, em cima do muro, sequer descendo para admitirem essa sua posição elevadamente ambígua, tergiversando, ora dizendo que aquilo é baixo demais para se configurar num muro, muros que devem ser uma barreira, flagrante separação, ora que é alto demais, já não sendo muro, tendo há muito passado disso, tornando-se uma quase intransponível barreira, nem são silenciosos de todo, abrindo espaço para algumas palavras, nem são o palavreado solto em pessoa, guardando, a intervalos nem sempre regulares, certo silêncio.

Para evitá-los, mal-entendidos que sempre cruzam nosso caminho, esclareço que aquele “psiu!”, como pode parecer a alguns, quem sabe se silenciosos ávidos por romperem esse voto, não é um chamamento, como um “vem cá”, pressupondo-se que a partir daí a conversa correrá solta, ou, pelo menos, (o)correrá. Psiu, aqui, é mesmo, com o fantasma camarada da enfermeira bonitona por trás, com sua autoridade delicada, um pedido de silêncio. Se um minuto protocolar, se menos, sem que isso seja um desmerecimento, ou se mais, podendo ser isso já um exagero de silenciosos exacerbados, não sei, mas peço algum silêncio para homenagear, hoje que é seu dia, o próprio, ele mesmo: psiu! o Silêncio.

Alguém – e que pode ser um não-silencioso que não deixa passar a chance de dizer alguma coisa, portanto, afastando-se do silêncio – talvez argumente, com palavras sonoramente compreensíveis, que é pouco original homenagear o silêncio com (mais) silêncio, sendo ele já pródigo nisso, como se cheio de si mesmo, propondo um barulho daqueles. Enquanto isso, arrogantemente eloquentes, ainda que não deem essa impressão, os silenciosos, cultores do silêncio, cultivadores taciturnos dessa flor tácita, sem palavras, mas deixando isso bem claro, defenderão que um Psiu, convocação à mudez, é pouco como homenagem, embora, por mais curto que seja, o próprio psiu já é um corte, golpe duro para quem não admite que se desrespeite o silêncio.

Não sei se é original, mas proponho que, hoje, cada um diga “silêncio!”, e perceba as reações em volta. Tenho quase certeza de que o homenageado do dia não anda com muito boa reputação.

CHICO VIVAS

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sábado, 1 de maio de 2010

DIA DO TRABALHO


Trabalho hercúleo!… Um Hércules, hoje, seria, cumprindo à risca seu destino (de) operário, sem reclamar da sorte, o algoz – traidor da causa – da classe trabalhadora, com sua infatigável disposição para a luta, desprezando, unilateralmente, qualquer acordo coletivo, sem conhecer fim-de-semana, descanso remunerado (a menos que se o considere já muito bem pago, por todo o sempre, por ter se tornado mito e ainda sobreviver em nossa preguiçosa imaginação), férias, sendo que se seus dias conhecessem horas extras, além das mais ordinárias, comuns a todo homem, inclusive àqueles que nem se dão ao trabalho de olhar para o relógio, todo esse tempo a mais seria dedicado ao seu labor.

“Doze Trabalhos”: gritariam os líderes da classe, logo secundados por um coro ensaiado de “isso é uma exploração da mão-de-obra operária!” E pela ordem do cronograma a ser cumprido:

1. Matar o Leão de Neméia – e a isso se juntaria, de imediato, uma nova causa, a da preservação da fauna, sem se esquecer de denunciar o não pagamento de adicional de periculosidade e a falta de equipamentos de segurança.

2. Combater a Hidra de Lerna – uma luta a mais, e, agora, contra uma besta-fera de “muita cabeça”, sete, nove ou cinqüenta, a depender da imaginação do mitógrafo.

3. Matar o javali de Erimanto, sob o risco, fora o intrínseco a esse trabalho, de ser acusado de estar-se tornando o maior destruidor da biodiversidade do mundo.

4. Mais um animal na lista, desta vez, a corça, menos por ela própria, talvez bem mais por seus pés de bronze e seus chifres de outro, com todo esse metal, vil só para os mais tolos, indo, provavelmente, para as mãos, parar nas mãos, do patrão, sem que o desafortunado trabalhador ganhe um níquel sequer a mais, como se já ganhasse algum.

5. Chegando aos céus, pôr fim aos pássaros do Lago Estínfale, e não um, dois ou meia dúzia de papa-capins, mas tantos eram que, dizem, voando, encobriam a luz do sol: pobre Hércules!

6. Domar o touro da ilha de Creta – e até que, haja vista o que já se viu, não é, essa tarefa, aparentemente, o pior dos trabalhos do mundo: talvez acostumado, não se dominando, Hércules, indomado, acabou por matar o bicho.

7. Agora, a coisa entra na ilegalidade: furtar os cavalos de Diomedes, rei (da Trácia) e filho de deus (de Marte), sem que isso seja coisa do outro mundo: e os tais cavalos expeliam, na literalidade poética do mito, fogo pelas ventas. E fica a pergunta: teria Hércules recebido da CIPA um treinamento contra esses iminentes acidentes com fogo?

8. Matar, matar, matar: eis o trabalho de Hércules. As vítimas, agora, são as amazonas – guerreiras, corajosas, mulheres.

9. Bem feito para quem se curva assim à tirania patronal: limpar as estrebarias de Áugias – e o indigno desse trabalho não está em lidar, com toda a superioridade(?) da humana condição, com aquilo que, nas nossas “estrebarias domésticas”, é cotidiano, salvo uma ou outra “prisão” mais prolongada (que as perpétuas são fogo!), mas, convenhamos que é dureza fazer o asseio de uma “toalete” para três mil bois, e que em trinta anos, jamais viu uma descarga!

10. Combater Gerion, o mais forte dos homens: depois desta lista de “deveres de casa”, isto até parece brincadeira de meninos, mesmo sendo com (ou contra) Gerion

11. Roubar as maçãs (isso é coisa de menino!) do Jardim das Hespérides, maçãs de ouro (isso é coisa de homem!).

12. Enfim, o décimo segundo trabalho: tirar Teseu dos Infernos – e para quem já trabalhou tantos, já limpou bosta de boi (bullshit!), já apagou o fogo das ventas das bestas, esse último trabalho parece até o paraíso da classe operária.

Alienado, podem dizer desse Hércules. Herói da contra-causa que, para ganhar um lugarzinho na história, não hesitou em jogar no lixo tantos anos de luta por um ideal; e nem sequer recebeu um “muito obrigado”, já que um aumento salarial, nem pensar, que isso é um mito para a classe trabalhadora.

CHICO VIVAS

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