Os que não o aceitam puro, contrariando, curiosamente, o gosto dos puristas, usam, numa repetição sem graça ou apenas como um gracejo nada original, o argumento de que de amarga a vida já é suficiente, não sendo, portanto, mais necessário que se lhe acrescente, nem que seja somente uma colherinha, mais algum amargor: e é assim que o café sucumbe ao açúcar, embora, como náufrago que não encontrou uma tábua de salvação a tempo e, pesado ainda, de início, todo o açúcar vá para o fundo, e só depois, com a intervenção da colher(inha ou não), agindo então já não como medida, e sim como um remo a remexer aquelas águas, entre mornas e quentes, é que, afinal, se dissolve todo, desaparecendo em corpo, permanecendo, porém, e de modo marcante, mesmo que nem sempre se dê por ele, em espírito, com sua indisfarçável doçura, fazendo com que, não raro, o café forte, de personalidade, seja confundido com um doce qualquer.
Café não deveria admitir diminutivo, já que cafezinho(s) são como lugares-comuns (como o de que de amargo já basta a vida, mesmo que, eventualmente, isso seja uma verdade, e nem tão incomum assim) que, ditos ou bebidos, são consumidos por hábito, sem que se lhes perceba, nos lugares-comuns, esse seu caráter que os impede de ter significados mais ricos, atados ao que o uso lhes impôs, ou não se percebe nesses constantes cafezinhos o gosto do próprio café – seja um em que o amargo natural assume preponderância, seja um, o que é mais comum na maioria dos lugares, que já se associou ao açúcar.
O bom café requer temperatura ideal, sem o preciosismo de se contar a quantidade exata de borbulhas que o calor faz brotar na água, sem o requinte (requentado, para os conhecedores, nem pensar!) de um termômetro específico para esses mergulhos: a boa temperatura para o café é aquela que não exige sopros – como alguém que gasta muito tempo se enfeitando para sair e, na hora de passar pela porta, gasta outro tanto, ao se ver, de relance, nalgum espelho, tirando os enfeites -, mas que também não permite que se o sorva de um só gole. Tomá-lo aos poucos estimula alguma reflexão, e não tanto por suas propriedades estimulantes, capazes de excitar a memória, sem garantias de que desse ato reflexivo surjam pensamentos originais, podendo mesmo ser que, de tanto pensar, se chegue à conclusão de que, muito doce então, se deveria experimentar um café mais “puro” ou de que, de tão amargo, têm razão os que atribuem à vida toda a cota de amargura, não sendo preciso nem uma colher(inha) a mais.
Embora recomendável – quando não se tem restrições em sentido contrário -, o café-da-manhã é outra história: é só refeição matinal em que nem sempre entra o café que lhe dá nome; e mesmo que esteja aí presente, além da força nada desprezível do hábito, é uma necessidade da hora. O café, sem os mesmos valores aristocráticos (ou “simplesmente” esnobes) do vinho (muitos, embora escondam isso, preferem os mais adocicados), pede alguma exclusividade, certo estar-a-sós, nada de “acompanhamentos”, a menos que, já demasiada amarga a vida, não se lhe possa mais somar nem uma gota de solidão, sob o risco de se afundar, cada vez mais, em lamúrias acres.
CHICO VIVAS