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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

DIA DE SÃO MIGUEL ARCANJO


Carinha de anjo!... E isso sempre nos remete, barrocos mesmo sem o saber, talvez mesmo sem tanto horror ao vazio (horror vacui), àquelas caras rechonchudas, pálidas com leve rubor nas maçãs algo salientes, olhos azuis copiados em geral aos tipos comuns em volta do “retratista”, além de uma obesidade, hoje indefensável, que parecia comprovar as delícias que os céus (nos) reservam, com seus rios de leite e mel. Anjos, contudo, crescem, tornam-se mar-manjos, sem que isso signifique uma real ascensão na hierarquia angelical, tornam-se até barbados, já sendo coisa de outros tempos (nessa atemporalidade em que “vivem”) os rostinhos escanhoados, ainda que brilhe o azul dos olhos, em que pese a possibilidade de tom assim se perder facilmente em meio ao azul eterno de uma existência sem problemas.


Se Miguel já nasceu marmanjo, barbado e de armas em riste é coisa de que não sei, como desconheço se, criança (se o foi algum dia), sonhava em, crescido, cultivar máscula barba (quem sabe se para assim deixar para trás, de uma vez por todas, as indefinições de gênero, motivo, talvez, de bullying entre outros seres igualmente celestes, mas bem mais definidos). E não se acha Miguel por aí, flutuando em nuvens pintadas, como que dependurado em fios invisíveis, preenchendo os vazios que fazem horror aos barrocos. Se se quer dar de cara com ele, com sua cara de anjo improvável, com sua barba respeitável e um tanto quanto ameaçadora, que se vá ao seu encontro nos campos de batalha, pois é lá onde se o poderá achar, na sua lida eterna de guerreiro, de exterminador do mal.


Miguel, destacado para cumprir as ordens da justiça (divina) – e como gostamos de repetir, mais pelo gosto da frase do que por acreditarmos rigorosamente no que ela expressa: ordens judiciais não se discutem (ainda mais se são tão superiores que não deixam margem a qualquer recurso protelatório) –, estava ali, apontando a saída, a serventia de uma casa que até então era o (verdadeiro) Paraíso, para um seu, até então, igual, anjo como ele, cheio de luz (Lúcifer), mas que ou cedeu à sedução adolescente de enfrentar o "Pai" ou previu o tédio de uma eternidade (eternamente) submissa e, percebendo demanda reprimida para benesses mais imediatas, quis avançar num mercado ainda não devidamente(?) explorado, à custa de ser mandado embora (de casa), pisado com uma literalidade que faria corar os defensores dos direitos "humanos".


E ninguém enxerga na força (do) policial, destacado (às vezes, um destacamento inteiro, nem sempre um policial “destacado”) para cumprir uma ordem de despejo emitida pela justiça, com suas armas de ofício, com sua cara escanhoada, com raros olhos azuis, a presença de um anjo, vendo somente o braço forte de uma autoridade exterminadora, ponta-de-lança de uma justiça que alimenta, especialmente nos que cultivam o gosto pelas repetições, a ideia de que suas decisões são para ser cumpridas, imediatamente, embora, pensando em sua própria sobrevivência, sempre deixe entreaberta a porta para novos recursos.


São Miguel – sempre, nós, indecisos entre o Paraíso com restrições e o descumprimento da lei, desde que este nos acene com promessas –, rogai por nós, meu anjo!


CHICO VIVAS

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terça-feira, 27 de setembro de 2011

DIA DO ENCANADOR


Desencane! Inclusive do temor, algo justificado, nesses dias em que o tempo (já passado para nós) se tornou um estigma, espécie de tiara de ferro em brasa que, cingindo nossa fronte, denuncia-nos, de cara, alardeando o quanto de tempo já nos é passado, de – que temor! – usar palavra assim, com todo jeito de gíria datada, por mais “bacana” que isso, “bicho”, pareça a alguns, isso de usar gírias, quaisquer que sejam, como se seu uso, por si, nos elevasse, de imediato, à “crista da onda”, fazendo-nos, eventualmente feios, de uma hora para outra, cheios de charme, surgirmos como um verdadeiro “pão”.


Se há os encanados – seja pelo medo reiterado de alguns de se meter em aventuras sedutoras, sustentando assim o eterno receio de se entrar pelo cano, seja, pelo contrário, por se viver se aventurando, já quase com morada fixa em canos diversos -, há, tendo em vista mercado tão promissor, os encanadores que, curiosamente, contrariando certa impressão primeira, não são profissionais – por escolha própria ou por falta de outras opções – que têm por função nos encanar, mas, justamente, tirar-nos de uma fria, quando a água aquecida, mesmo que em dias de inso(l)fismável calor – ah! desencane quanto a esses meus joguinhos infantis de palavras -, insiste em não dar o ar (e o vapor: que barato!) de sua graça, sabendo-se que isso não nos sairá assim, de graça, tendo-se de pagar pela água, quente ou não, pela energia que lhe empresta calor, além de se ter de pagar o próprio encanador em pessoa.


Mas, há frias maiores do que a impossibilidade circunstancial de um banho aquecido indispensável, nem que assim somente pelo hábito ou por não se querer se aventurar entrar numa (ducha) fria: ficar sem água, por defeito do encanamento, em qualquer temperatura, ou então ter água, fria em geral, por todos os lados, inundando nossa paciência, essa presa fácil de todos os naufrágios.


Chamem o encanador, ó, encanados! E ele virá, com ar blasé, entre o salvador-sem-o-saber (que é) e o redentor que, sabendo (o) que é, aproveita para, com olhar panorâmico e condescendente, diante da expectativa de um pecador prestes a ouvir, veredicto já adivinhado, sua sentença eterna, prolongar seu exame, coçar o queixo, rir de lado, observar tudo, enquanto decide se a danação desse “encanado”, pensa o encanador, deve ser leve, quase um paraíso (não é nada sério: uns ajustes aqui, outros acolá, e logo tudo resolvido estará), ou se um purgatório surgindo (olha, não vou te enganar, mas isso vai durar uns dias para consertar), ou, como um banho de água fria nas nossas teimosas esperanças, um previsível inferno (vamos ter de trocar todo o encanamento) – e isso, sabe Deus quanto vai durar, quanto vai (nos) custar!


Talvez como vingança – com sentimentos assim, como não saber, de antemão, o veredicto do Sumo-Juiz? -, esse danado do encanador, se resolve, de graça, seus próprios problemas, sem entrar pelo cano, sem ficar encanado, se seu problema, no entanto, é um joguinho (infantil que seja) de palavras, mesmo tão experiente, gato (e isso não é gíria) escaldado, chamando-me, desesperado já, em seu socorro, como se eu fosse um (des)“encanador” de palavras, gaiato como sou, acabará entrando, sim, numa tremenda fria.


CHICO VIVAS

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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DIA DO CONTADOR


Com cálculo, mas nada tão frio quanto um presumível clichê, refiz as contas, contando com a possibilidade de, num ajuste de contas comigo mesmo, sem outro adversário, cortar alguns custos, sem perceber, nessa operação de guerra, o custo suplementar que isso implicaria em meu já apertado orçamento, um saco, um dia, tido por mim como sem fundo, dada a facilidade com que, com a ilusão do crédito que bate à porta se oferecendo todo, mas não costuma bater à mesma porta para cobrar (mesmo quando as contas, essas “faturas expostas na privacidade”, se acumulam por debaixo da porta), ia ali metendo, sem pudor aparente, minhas mãos, saindo disso tudo, como se escapando de um aperto circunstancial, com renovado prazer, até que, esgotado, tal qual um saco já sem saco para meus arroubos consumistas, para minha rapacidade financeira, para minha luxúria por bens sequer de comprovado luxo (porque me deixo seduzir por uma boa aparência), dali, por mais que eu clamasse a um salvador, providencial redentor, um cristo de braços abertos para acobertar minhas irracionalidades compulsivas, não mais me escapava um níquel, nem uma moedinha sem valor de face considerável, apenas um engodo para, atirando-a na fonte, já saturada de desejos desvalorizados pela inflação das necessidades que se atropelam umas às outras, alimentar minhas esperança de fazer as pazes com os credores.


Tenha ou não calculado mal, passando um pente fino, cortei, a custo, o que me pareciam fios de pouco calibre, desnecessidades com aquele ar de “não me corte” de cortar o coração, com o peito se acelerando, ávido eu por, chegando ao fim, descobrir, afinal, que logrei êxito, que, apertando aqui, e mais ainda acolá, eis que surge, refulgente, sol cheio de promessas, uma folga, abertura a calhar para meter a mão no bolso e, saco que é, sem remexer muito nessa área tão delicada (em que nem mesmo pentes finos entram – quando era moda, hoje atitude saborosamente cafona, o pente (fino) se acomodava no bolso de trás), sair disso com alguns trocados.


Surpresa, para mim, não foi um sucesso que já não esperava; nem mesmo que os trocados que emergiram dessa operação de escavação profunda fossem mais do que simples troco que se despreza sem dó, até se sentindo aliviado por deixar de lado tão incômodos miúdos: surpresa foi descobrir que mais prazer do que nessa pescaria, como se fizesse um resgate no fundo de uma fonte cheia de desejos traduzidos, em diversas língua, em moedas aos montes, tive em todo esse cálculo, em me ajustar a um saco já de boca fechada para mim; em, tesoura na mão, cortar custos, em passar um pente fino.


Não digo que nunca mais comprarei: há água que ainda quero beber, há prato que ainda quero comer – e tudo isso, meus caros, custa. Não digo que jamais, outra vez, passarei da metade do saco, ficando mais próximo de sua boca, saída de emergência, do que do seu fundo, ponto do qual, se não se sai logo dali, não se sai nunca mais. Não digo que, a partir de agora, faço-me contador ou, pior(!) ainda, um sovina convicto, um avarento para o qual a fonte dos desejos, com moedas ali sendo jogadas, é um pesadelo inimaginável.


O que tinha a dizer, sem mais cortes, dito está.


CHICO VIVAS

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terça-feira, 20 de setembro de 2011

DIA DO POMBO DA PAZ


Malditos!

Ah! Que vontade de, declarando-lhes guerra, abrir fogo; e não me sendo suficiente a trilha original dos projéteis cortando o ar em acelerado disparo, fazendo-os ainda acompanhar por sua própria onomatopeia, língua solta, olhos significativos, talvez mesmo dentes cerrados, como se toda essa pantomima aumentasse o poder destrutivo da minha munição, potencializando-a, a ponto de, com uma única bala – que doce vitória! -, abater mais de um desses (inimigos).

Mas, dizendo assim, arrisco-me a despertar uma pena-trocadilho ou, e não sei se isso é ainda pior, atrair a ira dos pacifistas, capazes que são de levar a ferro e fogo, nem sempre mantendo essa ordem, seus ideais de paz, mesmo sabendo que isso não passa de um ideal, estando aí, provavelmente, seu real valor: uma busca persistente por um objetivo que não se alcança definitivamente, mas que pode ir sendo construindo, se não se desistir no meio do caminho.

Vivem em nome da paz, sem que se conheça procuração passada por ela para que se a defenda, falando por si mesmos. E creio que, se a paz intervier, pedindo a palavra, como se surpreendidos, ainda que circunstancialmente, os direitos do(s) procurador(es), eles são bem capazes de dispararem palavras duras, que podem até ter maior poder destrutivo do que um projétil real, não requerendo, ao contrário de um destes, que exige que se acerte na mosca (ou bem próximo dela), as palavras, uma mira exata, porque as batalhas verbais não são devastadoras apenas pela perícia da língua de quem as desfere, mas, em tantos casos, despreparados que somos para encarar lutas assim, aparentemente inofensivas, salvo um ou outro dano na sensibilidade ou na moral (o que tem cura), dependem do alvo se manter fixo, tal qual se agir assim, escutando tudo calado, fosse sinal claro de bravura, em lugar de, agitando-se, não esperar que se lhe desfechem todas as setas antes de, com aljava improvisada, lançar as suas, com a desvantagem de estar, eventualmente, fazendo isso pela primeira vez – quem sabe, a última.

E sei até onde gostaria de atingi-los: no peito!

Até aí, há de se pensar, nada de muito original, porque, afinal esse é sempre o alvo predileto: seja como um ponto real, local exato, seja como símbolo do que há de mais vulnerável, pois mesmo quando o dano físico não chega a ser fatal, se se acerta em cheio, mirando o ponto fraco e acertando o coração: vitória!

Não posso, contudo, continuar assim, aqui. Escrever implica em me manter num só lugar, até ao menos que chegue ao fim. E isso, isso de estar fixo, me faz o alvo perfeito para seus disparos corrosivos que, além do impacto escatológico, por menor que seja, ainda atrai, se não estiver imune a isso, danos a mais.

Vê-los juntos, pombos que são coletivos, desperta em mim um desejo sanguinário de partir para o ataque; porém, trocaria o bando inteiro, até me comprometendo a alimentá-lo(s), por um único, um “da paz”, vestido de branco, exibindo suas penas como um mártir alado que se pretende imolar em nome da humanidade (como se isso valesse “a pena”), embora mais efeito às coisas da terra, do chão firme, do que a esses céus, tão insustentáveis como qualquer ideal, morada, para alguns da própria paz.

Então, mandem esses pombos para lá. Ou eu os mando para o inferno.

CHICO VIVAS

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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

DIA DA CRUZ


Credo in cruz.

E você, crê em cruz?

Não há, aqui, qualquer outra alternativa, fora de um sim ou não, para que se possa marcá-la, com uma cruz, uma cruzinha que seja.

Há “cruzes” enormes que se carregam no peito, seja porque é ele que sempre as sustenta, ou porque é dele, descarregando-se, sem, no entanto, esvaziar-se, que tantas cruzes se alimentam, (re)carregando-se, em nome não do Pai, mas da sua própria sobrevivência. E quem tem a sua sabe que ela não admite diminutivos, já que isso, isso de seu tamanho externo não corresponde ao seu peso potencial, maior ou menor, a depender de como se a carrega, porque, com o tempo, mesmo que não demos por isso, aprendemos a lidar com nossa(s) cruz(es), mudando-a(s) de posição em busca de algum conforto, se é que se pode falar nele em tal situação.

É difícil, fora da fé carregada do peso ideal(!) agora para um alívio depois, com a promessa de ser assim por todo o sempre, enxergar algo de positivo na cruz, tão associada – eis o X da questão – à eliminação, ao que foi riscado do mapa, sendo que, ainda que saibamos de uma existência, sem sua representação documentada, traços desenhados num mapa, acabamos por dela duvidar, ainda que se trate da nossa própria existência, apesar dos fardos, outro nome tecido para a cruz, a nos lembrar de que estamos aqui, se não por outra razão, para carregá-los, como uma cruz.

Cruz também é próprio dos nomes: e quem o carrega, nem por isso, trazendo-o(a) tão perto de si, sente um peso a mais, a menos que se tome, por eventualmente não ser tão ilustre como se gostaria, tal nome como um fardo, tornando-se um sacrifício que se tem de levar vida afora, embora, no trato cotidiano, se possa esconder esse(a) Cruz, havendo, porém, momentos, carregados de formalidade, em que se tem de declará-lo, em alto e bom som, às vezes sob os olhares (e ouvidos) de outros, alardeando, contra a própria vontade, essa cruz que se carrega.

Mas, há fardos bem maiores. Demonstração clara do quanto não nos satisfazemos com o que temos é que alguns trocariam o(a) Pena que carregam, leve por natureza, portanto, aparentemente, sem que isso lhe pese, por um(a) Cruz, enquanto – cruzes! – o sonho de um Cruz pode ser justamente o Pena por outros tão desprezada.

Eu também tenho a minha cruz, que sequer é o Oliveira que me encerra, jardim que não encontrou em mim árvore ideal, estágio anterior, parada obrigatória para a última noite, antes da cruz a vir. A minha, como qualquer outro, carrego no peito, sem que se possa enxergá-la, mesmo se me rasgarem as vestes na intenção de assim se revelar meu íntimo. Carrego-a há tanto que parece já um sacrifício eterno. E os meus descansos, para me recarregar, é justamente a pena, mesmo que hoje ninguém fale mais assim: nem por isso deixa de ser uma pena.

Diante das alternativas, mero sim ou não, cruzo os dedos, e aguardo pelo acaso. Se nada acontece, descruzo-os e me apego à pena, como a uma tábua de salvação – e nem guardo expectativas de que seja uma salvação eterna, até porque, se assim fosse, salvo então, para que ainda me apegar a penas, apenas pelo hábito, como aquele que, de tanto carregar seus fardos, quando já não há cruz a levar, ainda sente seu peso em si?

CHICO VIVAS

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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

DIA DA BAILARINA





A moça de corpo perfeito rodopiava na ponta dos pés sobre o ângulo enviesado do espaldar de uma cadeira que se equilibrava, por sua vez, hesitante nessa brincadeira circense, num único pé, e assim sobre uma mesa plenamente assentada, com a firmeza dos seus quatro apoios clássicos, no chão: mesa esta que não se movia diante da cena dessa corajosa dançarina na ponta da sapatilha gasta de tanto ensaiar a vida, coreografia exigida às primeiras-bailarinas de qualquer corpo...de baile.


Então, vem um vento forte – e logo se pensa: desequilibrou a moça que faz parte do perfeito corpo que baila. Não! O vento sopra e aumenta a velocidade das voltas que ela própria dá, levando consigo a cadeira a, cada vez mais, rodopiar na ponta dos seus pés sem dedos, descalça, sem calços, sem calos, muda bailarina treinada na dança das cadeiras e do ventre, sem ancas, com molejo, sem cintura, com reboladinhas de moça – mesmo que nem sempre feitas à perfeição que se lhe exige.

Por mais que gire, como um pião sem freio, a cadeira que leva a bailarina, sem a conduzir, não altera a natureza da mesa, com todos os seus pés, como matrona solene, postos sobre o chão, sem direito a tonturas, a vertigens, a perder a cabeça, que, aliás, a mesa não tem, embora uma cadeira possa lhe ficar à cabeceira.

O chão, nesse imóvel, sustenta a mesa, a cadeira, a moça que dança e que vacila quando o vento a beija à força e solta seus cabelos, então presos num coque no alto da cabeça, desarmando o cuidadoso penteado, espalhando os fios sobre o rosto perfeito, cobrindo seus olhos, que piscam.

Aí entram as mãos, e logo afastam os cabelos revoltados de sua face afogueada por tantas idas e vindas. Mas esse movimento inesperado, não calculado nos ensaios árduos, à custa de calos na ponta dos pés, desequilibra sua dança, faz com que erre o pé no ângulo do encosto da cadeira-bailarina, transmitindo-lhe o impulso discordante, abalando seu sutil bailar numa perna só, torneada por exímio artesão, até que, finalmente, cai: primeiro, a cadeira que dava voltas sobre a mesa; a seguir, a moça, perdendo o prumo.

A mesa, no entanto, praticamente, não se abalou. O chão, do mesmo jeito, não saiu do (seu) lugar. Não houve lágrimas no rosto da dançarina – que, diga-se, pouco se machucou. Da cadeira, não se esperava mesmo nenhum choro, embora tenha quebrado uma de suas pernas desenhadas, apesar da madeira firme que há muito lhe dá corpo.

A bailarina, como se numa caixa de música, quando acaba a corda e finda-se a música, parecia um corpo inerte, de madeira, bem torneado é verdade (sabe-se lá pelas mãos de que coreógrafo exigente, em tantos ensaios), vai, pausadamente, voltando à vida, calada. Levanta-se; tenta levantar a cadeira – que não fica de pé por agora lhe faltar um dos seus. A mesa assiste a tudo e não as assiste em nada. O chão, o imóvel, nada fazem não.

A cadeira é colocada num canto, destacada, por ironia, para lembrar o perigo que agora representa para quem seu corpo, perfeito ou não, queira nela descansar. A mesa olha-a de revés. O chão é o mesmo de sempre. A moça, porém, move-se algo manca, tentando aprumar-se nos dois pés, não dando olhos para os velhos calos nem para os novos machucados (que parecem, nela, já nasceram antigos), e olha em volta, já imaginando uma outra dança.

Sobe na mesa, mas crê que isso é uma chã exibição, aquém do seu talento. Quer algo mais original. Afasta a mesa. Tem agora sob seus olhos todo o chão. Vai ao centro, que calcula com rapidez, mesmo que sem exatidão. Fica na ponta dos pés, sentindo os calos nos dedos e...espera acabar a música e esgotar-se a corda dessa enorme caixa de música que é o (seu) mundo. Toma a corda, pendura o silêncio em seu próprio pescoço comprido de madona maneirista, e se enforca.

Magistral essa primorosa bailarina! Dança com tamanha perfeição a dança da vida, que nem mesmo seus pés, seus dedos parecem tocar o chão nesse seu solo-nação.

Aplausos para a estrela! Aplausos de pé. Aplausos, claro, com as mãos daqueles que, levantando-se das suas cadeiras, mantêm-se presos, ao contrário dela, ao chão: porque, além de bailarina, ela é “primeira”.


CHICO VIVAS
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