Com a alienação do trabalho – e há quem, até hoje, jure por Deus que esse conceito é coisa do diabo –, pouco importa saber o responsável por amassar, por sovar a massa; por, com a desculpa de que essa é uma técnica ancestral e que continua mostrando sua eficácia, a ponto de as máquinas (um trabalho, pela ignorância do que faz tão automaticamente, muito mais alienado) se inspirarem, sem a correspondente transpiração, nos movimentos humanos, mesmo que deem voltas e mais voltas, provavelmente para que, deixando-nos tontos, não atentemos para a falta de originalidade, que importa, portanto, deixar o próprio suor, com sua característica salinidade, cair em gotas sobre essa mistura ainda crua: imagem intragável para uns, mas, para outros, retrato, em tons avermelhados, do trabalho do homem que, alienado do que faz, por vezes não pode consumir o pão que suas mãos “constroem”, ainda que essas mesmas mãos, agora, não lidem diretamente com as “massas”, e sim com botões: e botões assim, apertados a todo instante, é um prato cheio, na falta do pão, para se levantar nova bandeira – agora, em defesa dos (pobres) botões, tão pressionados que acabam sempre fazendo o que deles se espera, até, ao menos, que, como qualquer trabalhador rotineiro, ajustado às repetições, acabe “relaxando”, sabendo-se o quanto um (trabalhador, botão) relaxado dá trabalho (a outros trabalhadores, botões).
Se nos chega quentinho – venha esse calor de fábrica, comprado diretamente dela, sem maiores intermediários, venha de uma fonte doméstica que põe lenha na fogueira do nosso apetite –, que diabo, por que tenho de ficar pensando no trabalho que deu esse pão, ora me culpando por devorá-lo tão gostosamente, fruto de um fantasioso trabalho exsudante, ora, como se isso fosse uma boa lapada de suarenta manteiga levemente gelada sobre a massa ainda quente do pão escapado à fornalha – um inferno em que já não pontuam chamas e labaredas visíveis –, dizendo que cada pão que comemos mantém trabalhadores ocupados?
Dormido o pão – que ninguém é de ferro, embora, a depender da quantidade de horas de sono do pão, possa endurecer, quase a ferro se comparar –, não se podendo substituí-lo, imediatamente, por outro (como se, flagrado dormindo no ponto, prontamente, o trabalhador, por mais pão que tenha feita na vida, por mais suor que tenha gotejado sobre as massas, por mais botões que tenha apertado em sua existência estreita, fosse dispensado, logo substituído por outro, mais jovem, mais ávido por dar seu próprio suor à causa, vendo no repetitivo apertas de botões um novo desafio em sua vida), basta que se salpiquem gotas de águas sobre o pão, umedecendo-o levemente, sem que esse chuvisco alcance seu âmago, ficando à superfície, e, assim, tal qual conseguisse escapar a tempo de uma forte chuva inesperada, ser levado ao forno: ei-lo já ressuscitado!
Que sejam louvados os que fazem (os que amassam, os que suam, os que apertam), mas que se saboreie, sem culpas, o fruto desse trabalho, ainda que, numa mordida, sinta-se o travo amargo de se imaginar a falta que ele faz em outras bocas.
CHICO VIVAS
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