Não pretendo armar um circo aqui. Também não tenho a intenção de fazer disto um picadeiro e, aproveitando a oportunidade que eu mesmo pudesse ter criado, subir nele, palco ideal para minhas palhaçadas, ainda que se deva dizer, em respeito aos outros, artista mais “sérios”, que o picadeiro não é, apesar do seu flagrante domínio, espaço exclusivo dos palhaços. Derrubando, nessa sequência, cada possibilidade que se possa levantar (como um novo circo) de que eu pretendo mesmo é me exibir, não vou, imaginando que o circo já esteja armado – por quem não interessa: e não que quem arma o circo, seu próprio ou mero pau-mandado, não tenha lá seu interesse -, apresentar qualquer outro número, como se, de repente, me pusesse a voar pelos ares (por onde mais?), ou a equilibrar pratos rotativos em finas varetas, ou, confiante no gosto refinado das feras, pôr minha própria cabeça na boca de uma (eu não sou besta!), ou, puída cartola, sem brilho já o fraque, repetir ilusões sem nenhum mistério, a não ser o de haver ainda alguém que se ilude, achando que ninguém jamais vira aquele (seu) truque.
Na verdade, começo, aqui, pelo fim – embora, pela quantidade de linhas, deva estar já me aproximando do meio -, porque o que faço é justamente desarmar todo esse circo que, como se sabe, desde que se acredite na(s) minha(s) palavra(s), não fui eu próprio que armei. É de se notar, no entanto, que, salvo se então se der por findos os circos, não este em especial, mas toda a atividade circense, quando se desarma um, está-se, virtualmente, com os mesmos paus e panos, com as mesmas palhaçadas, armando um circo, não um novo circo, e sim armando-o, de novo, num abaixa-levanta que levou a vida de muitas gerações, que levou gerações ao circo, apesar de hoje isso quase não fazer mais sentido: não apenas (ir ao) o circo em si, atividade cada vez mais rara, mas em, com olhos curiosos, observar, detalhadamente, como se arma um circo, com todas as expectativas de futuras alegrias e pasmos, e a desilusão de se ver o circo, desarmado já, ir-se embora. Se o mágico desse circo fosse bom mesmo, ainda que só mais uma de suas ilusões cansadas, desfaria essa desilusão.
Circos com lugares acolchoados, com ar refrigerado, com comida em série e artistas “assépticos” podem fazer um grande espetáculo, coisa (grande que é) de encher os olhos, nada, porém, que se possa comparar às tábuas levemente soltas do “galinheiro”, termo íntimo para se tratar, infantilmente, as arquibancadas, tido como poleiro pelos esnobes que, querendo mostrar o peso de sua carteira, pagam bem mais pelas cadeiras, duras como tábuas quaisquer, fincadas num chão enlameado disfarçado com outras tábuas, levemente pregadas ali, mas, lugar de honra mesmo, naquele anfiteatro mambembe, é o outro, incomparável para olhos juvenis que encontram no anonimato do público (do lado menos respeitável) ocasião de ouro para suas travessuras fora de série.
E tantas vezes o circo é melhor pelo que se passa fora do picadeiro, sem, com isso, afirmar que os artistas dali são dispensáveis, sendo justamente sua presença que anima a plateia, vibrando esta com o encanto, vibrando talvez ainda mais com o trapezista que cai, com a mulher serrada ao meio que não se “reencontra” mais, com a fera que comeu o que lhe estava mais à mão, com o palhaço que, não podendo ir à função, mandou-me, aqui, em seu lugar.
CHICO VIVAS