Comer, comer; comer, comer: cantam os comilões, sem apresentarem argumentos convincentes, é melhor para poder crescer, valendo-se, além da necessidade fisiológica e se nutrir o corpo, do quanto isso faz bem à vida, atribuindo-lhe, a sua própria revelia, um gosto uniforme por tudo, como aquele glutão que nada recusa, não tendo, a esse respeito, quaisquer idiossincrasias, achando mesmo que isso de gostar de uma coisa e não gostar da outra é puro charme, talvez mesmo esnobismo, tentativa de parecer mais refinado (a ponto de só consumir açúcar mascavo), do tipo que seleciona, e não come tudo o que lhe oferecem.
Há quem diga que o ramo da alimentação tem genuína garantia de sobrevivência, na medida em que se alimenta (até ele!) da impossibilidade, salvo ascetas ao extremo ou da extrema pobreza, de se não-comer. Comer, portanto, é mesmo o melhor para poder “crescer”, especialmente se, em vez de se oferecer qualquer coisa, baseando-se tão-só na intuição (que nem sempre é suficiente para encher a barriga) ou mesmo num gosto pessoal, ou então porque esse ou aquele, tendo experimentado isso ou aquilo que fizemos, disse-nos que deveríamos vender, abrindo um negócio, sem que assine conosco um contrato pelo qual, pelo menos ele, se compromete a ser nosso regular freguês, parte-se para algo mais racional, uma bisbilhotagem, com a chancela de ser científica, através de pesquisa que quer descobrir nossos gostos, até os não reveláveis a princípio, aqueles que não encontram, em qualquer esquina, sua respectiva satisfação, justamente os que nos fazem, sabendo que há como e onde satisfazê-los, deixar a razão de lado, capazes mesmo de pagarmos uma fortuna por esse prazer.
Houve tempo em que comer bem estava diretamente relacionado ao comer bastante, e as suas consequências visíveis, dada a desproporção entre a ingesta calórica (isso é bem coisa do nosso tempo) e sua perda necessária pela queima muscular, era um sinal a mais de saúde, símbolo, inclusive, com sua proeminência, do bem-viver. Agora, mais calóricos os alimentos, menos ágeis e ativos nós, é um risco calculado o ato de comer, quase uma experiência bioquímica, além de (indigesta) matemática a temperar cálculos insípidos cujo resultado nos dirá se podemos ainda nos dar ao luxo de uma mínima sobremesa, ou se teremos, por erro de cálculo, de abrir mão dela, por dias intermináveis.
Mas, quem vive do comer alheio (e não de comer o alheio) parece ir bem, embora, como eternos insatisfeitos, como se jamais se sentissem suficientemente nutridos, tenha sempre do que reclamar: quando não, dos impostos que recaem sobre os alimentos em geral, dizendo-se fartos deles – o que mostra que nem tudo aquilo que de pode (ou se tem de) engolir (nos) faz mesmo bem.
Quem vive – se é que isso é vida – na incerteza constante de ter ou não o que comer, de um modo ou de outro, também cresce, mesmo que não na exata proporção de sua vontade de comer, cumulativa como é: e chego a me sentir culpado de, aqui, tanto repetir “comer” ou “como” (“como” verbo egoisticamente na primeira pessoa ou “como” conjunção – o que pode tornar isto, por si, já de difícil digestão, intragável opção).
Um dia, cantou-se o contrário do “comer, comer, para poder crescer”: crescer, crescer, para só (depois que o bolo estivesse crescido) comer – e dele mal sobraram migalhas. O que se viu, no entanto, é que o bolo continua crescendo, sem sua prometida divisão. Ironicamente – e isso não é “papo” meu -, aquele que sugeriu essa receita, espécie de “delfim” da economia de então, é, ainda hoje, a robusta imagem, no “papo” e abaixo dele, retrato de uma barriga cheia, do que seria uma sociedade justa, com a obesidade a que todos “têm direito” como o fiel da balança.
CHICO VIVAS