Corte-e-costura, apesar dos processos automatizados, e que não prescindem do corte nem da costura – embora algumas peças procurem se vender melhor justamente com o atrativo, ainda de “roupa de baixo”, ou talvez por isso mesmo, de que não possuem costuras -, permanece, numa imagem primeira, experiência tipicamente manual, vendo-se, mesmo a distância, aliás, a uma distância já indefinida, jogado como foi, o corte-e-costura, para o rol das atividades pretéritas, alguém debruçado sobre o tecido (a depender do recuo desse pretérito, simplesmente, “pano” ou “fazenda”), riscando-o, como se ali moldasse uma criatura fantástica, um fantasma sem corpo, mas com todo seu contorno desenhado, e, depois, cortando-o, com uma precisão de fazer inveja aos que, profissionalmente ou por apurado amadorismo, se dedicam a trabalhos que exigem precisão, ainda que, nesse caso, sejam previsíveis as sobras, retalhos admitidos, desde que seu tamanho não dê sinais de desperdício ou de imperícia (do) profissional.
Cortado já, ainda sem as costuras definitivas, a criatura, não maior que seu criador, mesmo quando o alfaiate é um baixo profissional sob encomenda de um cliente avantajado, e mesmo que não se trate de nenhum modelo original, mas de um já copiado à exaustão da moda da hora (se tanto, porque a moda, agora, é questão de segundos, isso segundo eu mesmo, que pouco ou nada entendo de moda), apresenta-se sob pespontos, espécie de desenho tracejado que, ainda que se lhe adivinhe a forma por inteiro, mostra-se como que interrompido, à espera de traços que completem aquelas (aparentes) lacunas. Linhas antes tão visíveis, os pespontos, alinhavando o assunto aqui, dão lugar, queiram ou não, a outras, invisíveis (a menos que a moda exija sua aparência superficial), queiram ou não, tais linhas sucumbem ao anonimato, caracterizando-se a costura em si.
Mas, ainda não se dá por findo o trabalho, necessitando-se, por precaução, de mais uma prova, que nem precisa ser a de número nove. Tudo certo ou, havendo reparos a se fazer, refeito o trabalho, batido o martelo, eis mais uma obra, alienado esforço quando em série, sem que, se ainda há intervenção humana direta nessa linha de produção, se tenha consciência da própria participação na peça pronta: talvez, um dia – e isso não é uma projeção para o futuro, e sim uma volta no tempo -, alguém, vendo aquele “fantasma de pano”, agora com vida própria, reconhecesse ali seu trabalho, até mesmo seu “estilo pessoal” de cortar e costurar, mesmo que então não passasse de mais um alfaiate provinciano que sequer possuía, em seu vocabulário tecido apenas com palavras necessárias, o termo estilo, por ser sem serventia, porque, autodidata, velho menino-aprendiz de um outro alfaiate, que se iniciou também nessa vida do mesmo jeito, menino ainda, seguia apenas sua intuição, como se esta fosse uma “linha invisível” que o conduzia.
Alfaiate, hoje, é uma reminiscência desvalorizada, dada a concorrência em série, a preços bem mais em conta, ou uma reserva (às vezes, por puro esnobismo de “classe”) para os endinheirados que não desejam ser confundidos com personalidades-em-série, crendo no poder da diferenciação da roupa feita com exclusividade, mesmo que poucos percebam isso, nem sempre sequer outros endinheirados sob medida.
E estas linhas são os meus pespontos. Mas, com uma diferença: não podendo fazer melhor, mesmo com erros evidentes, fica tudo como obra acabada.
CHICO VIVAS
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