Gilberto Freyre
Quem me dera uma negra, escravo eu dessa fantasia fora do tempo, embora persista ainda a servidão que nem procura mais justificativa na cor para, arrancada talvez à sua família, formada na informalidade de espaços cuja exiguidade favorece a promiscuidade, estreita liberdade (que por dentro, ela sempre exista, embora seja do lado de fora que os grilhões mostrem sua ferocidade), acalentar ao seio um sinhozinho de colo e passar da sua língua, de um estrangeiro continente, o conteúdo amaciado de palavras mastigadas para lhes subtrair a dureza original, pelo acréscimo de uma saliva emoliente: e que importa se, crescido, crendo-se já senhor não só de si mesmo, mas de todos os escravos que herda (que ...erda!), requer, com base num direito que acredita de todo natural, o peito das negras jovens, ou então já não reconhece como leito pretérito o regaço em frangalhos de hoje?!
Como eu queria, ao preço até de abrir mão de alguma coisa da minha própria liberdade de tudo querer, querer tudo, escravizar-me a uma boca que transmitisse à minha língua, cada vez mais áspera, uma rudeza que alguns julgam apanágio da raça, numa leitura apressadíssima do que sejam as complexidades de um povo! Como queria que da minha cabeça saíssem palavras de pedra, desde que, ao falá-las, já tivessem passado por uma língua amaciadora! E essa “negra” bem pode ser, sob o risco de me mostrar já algo cor-de-rosa, esse coração que se pinta de vermelho, menos por uma verossimilhança com a fisiologia de bomba em constante explosão de sangue, e mais por se assemelhar a essa cor carregada de rubor típico das paixões.
Assim, entre a cabeça, fonte de todas as pedras, até a língua, deságue de todas as palavras, mesmo das mais caladas, estas pulando para a mão, transferindo para a tinta, que pode ser vermelha como sangue, indelével como paixões, essa sua taciturnidade, haveria, obrigatoriamente, uma parada no coração, sem ameaça à vida, sequer com uma pontada sintomática. Aí, minha nêga, escrava à sua própria revelia (porque há, sim, os que se deixam escravizar, por pura paixão), o que parecia ser (indissoluvelmente) sólido, desmancha-se, “atacado”, no coração mole, por um exército decidido a emprestar a palavras tão concretas um certo ar rarefeito, aerado doce que não pesa na boca, embora essa sua leveza engane, ao precipitar o apetite, levando a um consumo exagerado de um discurso adocicado, a ponte de, então, se desejar, ardentemente, uma palavra mais picante que equilibre tanta doçura saída do peito.
Se estas, aqui, são as tais duras palavras que me escapam ora da cabeça, ou se já são, roladas nas pedras de lá, com a fúria de um rock’n roll sem condescendência, o resultado daquela “operação cardíaca” que as faz algodão-doce, eu não sei. Sequer sei se, ao escrevê-las, eu o faço para recuperar o som perdido na mudez da língua ou se, ao deixar a mão intervir aí, nessa escritura-escravatura da qual nunca serei senhor, nem mesmo um sinhozinho com tanto engenho, as palavras dão voz a um coração calado, colado ao peito como um eternamente faminto bebê de colo.
CHICO VIVAS
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