Clichê é como aquele tal (do) “pretinho básico”, peça dita fundamental no guarda-roupa feminino (o masculino é mais monocromático), servindo inclusive, o que não é sua função primordial, como trocadilho de caráter sexo-racista. Mesmo que nem sempre requisitado, como súdito que não se atreve a reclamar, está permanentemente pronto a se oferecer como alternativa à falta de variedade do armário ou à falta de tempo em se manter indefinidamente indeciso(a): mas é mais fácil se livrar dos espelhos, sem precisar correr o risco duplo de, quebrando-o, ferir-se e ainda arranjar anos de azar, do que de outros (olhos-)espelho(s).
Pretinho básico nas conversas ligeiras sobre a “decadência da sociedade”, argumento usado não é de hoje, a destruição da família (num singular institucional) parece explicar todo esse desmoronamento moral, dizendo-se isso com ar saudoso dos tempos em que família era coisa de respeito, dizendo isso quem, em sua própria geração, já observava tal desfazimento(!) familiar, sem ter conhecido outra família, a não ser de ouvir falar, em repetidos clichês.
E como eram, afinal, essas famílias (de antanho, para bem lembrar de que tempo elas, supostamente, eram)?
Era um pai, sumo-provedor, único mantenedor dessa instituição (embora, com poesia discutível, se dissesse que cabia à mãe o verdadeiro equilíbrio emocional dos seus membros, desde que ela aceitasse, em troca dessa faixa de rainha, a submissão de quase serva), pai que era autoridade máxima dentro de casa, mesmo quando, fora, era um subalterno não apenas obediente às normas de uma hierarquia sádica, como inflamado defensor do seu direito de bem servir, orgulhando-se mesmo de ser assim, sublimando tudo isso, sem recalques, num lar conduzido com rédeas curtas: às vezes, única ligação entre o mundo (por mais restrito que esse conceito fosse então, mundo circunscrito mesmo aos exíguos limites de um bairro qualquer) e a casa, voz respeitável em todos os assuntos, vistos, quase sempre, de relance nas manchetes penduradas nos varais das bancas de jornais.
Era também uma mãe, figura opaca em torno da qual havia um halo de bondade sem fim (poucos, como Graciliano Ramos, pôde dizer, da sua, sabe-se lá se usando da arte para uma catarse familiar, que era ranzinza, com uma cabeça que lembrava caneca cheia de mossas), recurso mariano que obscurecia sua pedagogia do chicote, sendo que o legítimo direito humano de fugir ao castigo significava um agravamento da pena, como em qualquer prisão. Com nada ou pouco de seu, mesmo que tenha chegado àquele lar cheia de bens, a não ser o “bem maior” para toda mãe, os filhos: quanto ao marido, meu bem, não raro, porque era homem, tinha outra mulher, mantida por debaixo dos panos mais transparentes deste mundo.
Eram ainda os filhos – em alguns casos, filhos sem conta – que não ousavam levantar a voz, em particular para o pai (no íntimo, talvez gritasse seus ressentimentos), sempre ameaçado pelo descumprimento de um mandamento divino, embora temor maior, por mais inconsciente, residisse mesmo na possibilidade de, preço alto pago pela voz elevada, ser posto para fora de casa, só retornando, filho pródigo com rabinho entre as pernas, prato-cheio para a confirmação das pragas divinas, ou como um filho que encontrou nessa expulsão a chance de ser bem-sucedido, tornando-se, a essa altura, figura maior do que o pai, querendo, com pedido de bênção insincera, mostrar, nesse retorno, quão alto chegou, oportunidade para o pai, teimosamente querendo manter elevada sua cabeça que, pela idade, já vai naturalmente se curvando, enfim, perdoá-lo com um “Deus te abençoe, meu filho” dito com uma honestidade tardia, para o doce naufrágio, em suas próprias águas, dos olhos maternos – mãe que, nesse instante, atinge o máximo daquele halo: Ave, Maria!
Se o pretinho básico se mostra eficiente, até mais, atraindo olhares e elogiosos comentários pelo bom gosto na escolha do figurino, por que não podemos continuar culpando o desmoronamento da família por todas as infelicidades deste fim dos tempos?
CHICO VIVAS
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