Sobre ti, Antônio, pesa o anacronismo iconográfico de carregares em teus braços o Filho de Deus, nascido então há tanto, já morto há muito – e como ressuscitado, então...
Sobre ti, Antônio, ainda, fardo não dos mais leves, mesmo que envolto numa certa “graça” popular, pesam esperanças de matrimônio, apesar de que, para alguns olhos, por serem observadores demais ou por serem detalhistas de menos, isso de fazer promessa para se casar já se tenha tornado bem mais anacrônico do que ver um “moleque divino” em teu colo, impossível de estar ali, a não ser por mais uma obra da Graça ou por mais um gracejo do artista-escultor, quem sabe se então menos artista (no que os artistas têm de distanciado dos apelos mundanos, com inspirações, na falta de outra explicação, quase divinas) do que um homem comum, em que pese seu talento para a escultura, comum a ponto de acreditar mais num milagre dos céus do que na força redentora de sua arte, até se arriscando a uma ousadia, desde que não chegue perto da (própria) iconoclastia, já que assim estaria cortando(-se) na própria carne, num sacrifício sem garantia, sequer humanas, de retorno na forma de uma graça alcançada, ainda que isso seja, em momentos pouco inspirados, uma nova inspiração, numa experiência epifânica.
Sobre ti, Antônio, cujo peso do gesso em miniatura não revela as toneladas a sustentar, arcando teus ombros varonis, arcando tu, Antônio, com o ônus de carregares uma história e de ratificares, a todo instante de uma eternidade sem limites, uma hagiografia que mais se liga, como um compromisso firmado com Deus, a uma narrativa pedagógica, catequética, do que propriamente aos rigores do método científico de se revelar fatos, ainda faz pressão a fama de bom de papo, de língua comprida (com o comprimento dela proporcional a sua eloquência divina): e quando, pergunto-te eu, Antônio, querias apenas jogar conversa fora, para passar o tempo, davas liberdade a tua língua ou, comprometido até a alma com Deus, reservavas-te o direito de permanecer calado?
Tua língua, Antônio, ainda vive, como relíquia: só não sei se ela fala o latim douto, idioma oficial no trato com os céus, morta língua já, ou se fala nosso português. Se fala este, qual: o teu? Se o teu, o teu daquele tempo ou o português de hoje? Ou será que o nosso, brasileirinho tirado a um violão chorado?
Perdidos versos, restos de uma memória esfacelada, vem-me à mente, escapando, timidamente, por entre os lábios desafinados: “Subiu precioso incenso até o trono do Altíssimo, incensai glorioso Antônio com perfumes de louvor”.
Hoje, tudo me parece exagerado. Se já glorioso, e imagino que por méritos próprios, para que incensar-te tanto, Antônio? Se tão eloquente, bem sabes, Antônio, pelo gosto pelas palavras, o quanto vale um precioso silêncio, tão assim quanto um incenso sincero que se dirige, em baforadas olorosas, ao divino. Patrocinares casamentos, Antônio, em dias sem laço, em humanidade sem nós, com eus aos montes, não será macular tua história, ainda que acrescentes mais um milagre a tua hagiografia?
Também eu, um língua-comprida, longe, porém, do fogo das tuas palavras incandescentes, carrego meus próprios pesos. E dizer tudo isto que acabo de (te) dizer é só um meio, enquanto o milagre não vem, de aliviar meus fardos verbais.
CHICO VIVAS
0 comentários:
Postar um comentário