Hoje é mesmo dia do quê?
A pergunta, claro, não é a sério. E isso não porque não se trate de um assunto relevante, daqueles que merecem, queiramos ou não, tiremos ou não disso algum prazer, entrar na nossa memória, às vezes sendo necessário que tenhamos de apagar algo ali já com seu lugar garantido, mesmo que não haja garantias de que venhamos a disso precisar, para assim abrir espaço pra a necessidade da vez, num comércio inconsciente, embora, nessa troca, aproveitemos, sempre inconscientemente, para riscar da memória o que ali entrou por obrigação, sem que tivéssemos a opção de o deixarmos para lá: e ainda que se saiba que o inconsciente é uma caixa de pancada em que descarregamos a responsabilidade por atos (conscientes) que não podemos ou não “desejamos” (palavra tão cara ao inconsciente) assumir, respondendo por suas consequências, neste caso não se pode falar do consciente, já que o ato voluntário de tirar alguma coisa da memória, como se usássemos, com imperícia, uma borracha inapropriada que, ao tentar esconder, acaba por realçar, nem que seja por uma evidente ausência, resulta, frequentemente, num reforço a mais para se lembrar.
Se aquela pergunta tivesse sido feita e levada a sério, eis a resposta (e como gostaria de, aqui, inventar um esquecimento providencial para alongar as linhas, criando algum mistério, mas, “curto” como sou por natureza, já alongo mesmo sem o perceber, e quanto ao mistério, ao propô-lo, com sorrisos entre nervosos e ansiosos, já dou pistas de sua solução): hoje é dia da...lembrança.
Um dia – termo que tão bem se ajusta à lembrança, especialmente quando, como se um vento lhe batesse, cariciosamente, jogando-o para trás, isso é já uma recordação pretérita, não raro preterida em favor de outros (novos) dias, na crença de que “este”, sim, será inesquecível, vindo, no entanto, a cair no mesmo limbo em que todos os dias caem –, a lembrança foi algo que se dava gratuitamente, fazendo parte, inclusive, de uma cortesia provinciana que a urbanidade solapou, seja pela pressa, mesmo para se dizer tão poucas palavras, seja porque, contaminados pela cultura da vida custosa, nos soe um desperdício mandar, tão graciosamente assim, lembranças.
Hoje – um dia com o qual não nos importamos tanto, mesmo que repitamos que só ele existe, que só temos ele para viver (hoje), até ao menos que se torne um ontem -, a lembrança, como “memória”, é até caso de polícia, de investigação minuciosa sobre nossos atos, perseguindo nossos rastros virtuais, alguns realizados com inconsciência calculada (para usarmos isso, futuramente, a nosso favor), outros com a espontaneidade de quem, como um herói que se lança em água tumultuosas quando sequer está em perigo na terra firme, salva o que lhe surge pela frente. Hoje também se tornou questão de saúde, quando a lembrança de hoje parece mais distante do que a daqueles dias em que se enviava, de boca a boca, lembranças, num beijo omitido, talvez inconscientemente presente: de-mente, afinal, são todas as lembranças.
Sem tempo para comprar, individualmente, “lembrancinhas”, nesse varejo de miudezas sem valor, quase negociadas sem consciência do ato (da compra), seguindo-se apenas a ditadura do calendário, envio esta(s), neste dia de hoje, ainda com esperança de vir a fazê-lo, novamente, num outro amanhã, se até lá de dias assim eu ainda me lembrar.
CHICO VIVAS