Com uma lógica que (só) funciona por etapas, sequenciadas, com uma disciplina burocrática que só permite que se dê início a uma nova etapa quando já se deu por finda a anterior, não se conhecendo a simultaneidade de ações, como se se desconhecesse a lógica própria que há nisso, diante de um compositor, logo se quer saber dele, inquirindo-o assim, se primeiro lhe vem a letra ou a música, mesmo sem se ter conhecimento prévio de que o compositor em questão é um que faz uma e outra coisa, e não um daqueles que só fazem uma coisa ou outra, não sendo, por isso, necessariamente, compositor demasiadamente disciplinado ou burocrático, porque talvez muito gostaria de fazer (de) tudo, reconhecendo em si, no entanto, mesmo se um compositor ainda não reconhecido, mais talento para isso ou para aquilo, investindo, assim, com disciplina invejável, mais naquilo ou nisso, a ponto de até, quando se apega por demais a uma habilidade específica, desprezando outra(s) como pura perda de tempo, tornar-se um burocrata da composição.
Talvez aquele que, por talento ou por decisão baseada numa lógica de mercado, prefere a música, abstrata por natureza como é, não escute, ao compor, correspondentes palavras, letras surgindo-lhe espontaneamente, não no rastro – que isso já pressupõe que algo só começou com o fim de alguma coisa que já passou, deixando assim o tal rastro – de música, mas simultaneamente a ela.
Porém, quem se atém à letra, “compondo palavras”, inevitavelmente, em tempo real, escuta sua música: não obrigatoriamente a música que há de acompanhar sua letra, mas a música própria das palavras, às vezes, tirando daí, dessa fonte sonora, a inspiração para um arranjo posterior.
Letra e música, como barba e cabelo (não esquecendo o bigode), um dia, andaram juntas, inseparáveis mesmo, estranhando-se, como se isso não fizesse o menor sentido, sem lógica portanto, que um compositor só o fosse de letras, enquanto outro, de música apenas, tal qual mexer no cabelo não interferisse em nada na aparência da barba, ou vice-versa. Em nome da especialização do trabalho – conceito, hoje, sem nada de especial, havendo mesmo especialistas em especialização do trabalho -, um faz isso, enquanto o outro, em nome de uma racionalidade, se dedica àquilo, numa simultaneidade de ações isoladas.
Com isso, talvez, o letrista, acostumado a “só” pensar em palavras, tenha deixado de, com o tempo, dar ouvidos à música própria das palavras, mesmo que compor o arranjo seja tarefa (especializada) de outro. E o músico, que já não ouvia, tão mergulhado em suas abstrações, as palavras, tenha mesmo feito “ouvidos de mercador” para a letra que, a sua própria revelia, trabalhando na música, insistia em lhe surgir, afastando-a mesmo de si, pelo temor de que isso, trabalho então alheio, atrapalhasse o seu, tão especial(izado), ou, na pior das hipóteses, acabasse fazendo o trabalho de dois.
E sabe como é: dois pra lá, dois pra cá...
CHICO VIVAS