E não é que o comer, um dia mera imposição de uma biologia faminta e que não gosta de ser contrariada, envelhecendo e enfeando mais rapidamente aqueles que se arriscam a ir de encontro a ela, seja por uma questão de fé, visando a uma ascese, seja, por contraditório que pareça, objetivando justamente uma juventude mais prolongada e uma beleza que acompanhe tão duradoura juventude: e não é que uma necessidade, com todas as suas consequências escatológicas, se tornou um cultuado prazer, tanto para os que retiram seu bem-estar(?) da possibilidade de comer de tudo, em grandes quantidades, querendo assim estender ao limite do possível (ou até um pouquinho além) o prazer experimentado com as pequenas porções, quanto os que, calculadamente comedidos, só encontram esse mesmo prazer (gastronômico) em porções que deixariam, incrédulos, de boca aberta aqueles outros.
De prazer, pessoal e intransferível, mesmo que em torno de uma mesa que comporte muitos comensais ao mesmo tempo, nem sempre bem-comportados à mesa (o que pode emprestar a esse encontro uma alegria a mais, espécie de tempero extra para o prazer-sentado), o comer se tornou caso de saúde pública, requerendo, numa dessas contradições de nos deixar de queixo caído, com o risco de, eventualmente comendo, parecermos mal-comportados ao nos exibir assim, quando, por norma de civilidade, deveríamos manter a boca fechada, uma inversão de recursos, com o objetivo de educar, quando ainda possível, e de curar, quando não há mais boa educação que dê jeito imediato, recursos que, para muitos, especialmente os que têm no comer regular uma aspiração constantemente empurrada para um futuro otimista, melhor seria investir em mais comida.
Eis que surge então o nutricionista – alguns, com suas razões semânticas ou apenas pelo gosto esnobe de uma lógica como sufixo, preferem o termo nutrólogo -, estudioso que, sem, publicamente, desprezar o prazer, até considerando-o como parte fundamental do bem-comer, centra esforços em ensinar como se portar à mesa, ainda que isso já não se refira ao preciosismo no uso dos talheres adequados para cada prato, a correta postura, com atenção especial dada aos cotovelos discretamente ausentes, mesmo que cada vez mais não se possa sentar (à mesa) para comer, tendo-se de fazer isso de pé, até quando muito próximos da mesa.
Isso combina com aquilo. E aquele casamento que então se julgava perfeito, com pares que fazem tão boa-figura em qualquer mesa, é mera aparência, havendo por trás dessa felicidade um risco (à saúde) alimentado por outros interesses. E os novos casais apresentados como protagonistas de uma união promissora não nos apetece tanto, tão sem graça que nos parecem à primeira vista (e todos, algum dia, comemos com os olhos), casal meio sem sal ou excessivamente açucarado em suas manifestações de felicidade servida em quantidades “racionais”, ração humana que nos subtrai uma diferença (em relação a outros animais): a de poder escolher, até onde isso é mesmo uma escolha, encher os olhos mais que a barriga, encher a barriga à revelia dos olhos, encher essa mesma barriga como se então se comesse com os olhos, e até, se isso for uma escolha, ficar apenas olhando, de boca aberta, tanta comida junta ou prato tão grande para tão mínima porção.
Hum!... tudo isso me deu uma fome!
CHICO VIVAS