Tendo-se-me tirado a possibilidade de dizer, escrevendo, pois, falando, isso já não faz muito sentido, “estas mal-traçadas linhas”, agora que tudo se ajusta automaticamente, com “caligrafia” à escolha, havendo uma fonte quase inesgotável delas, de onde jorra até, se se buscar com cuidado e paciência, uma letra que imita a naturalidade das pretéritas linhas, tão mal-traçadas, embora, muitas vezes, o que delas se dizia era algo muito bem calculado para chamar a atenção justamente para uma elogiável correção: pois então, já não podendo lançar mão desse recurso (não se justificando mais se escrever à mão), apresentando-se minhas linhas com uma retidão exemplar), o que me resta para desculpar a irregularidade do meu escrever – e não porque não o faça regularmente, mas porque o que escrevo carece de uma linha que o oriente, a ponto de quase não haver diferença entre se ler o que sai da minha mão (no modo manual, da mão esquerda; no automático, pilotado por ambas), se se ler, como é costume entre nós, orientados que fomos para isso, da esquerda para a direita, de cima para baixo, e de se ler ao contrário, sob outra “orientação”, de lá para cá.
Diferença há, dirá alguém que escreve bem, a ponto de jamais ter pensado em recorrer a mal-traçadas linhas como desculpa para sua embriaguez vernacular, chegando, em alguns casos, a nos deixar tontos com sua escrita “vertiginosa”, uma montanha-russa escrita em vernáculo, com caracter(es) próprio(s) aos latinos, entre aquele que escreve por usar a mão, ou mesmo a ponta de um dos seus dedos para decalcar palavras, e aquele outro, o que cria os decalques originais (mesmo que, ao fazer isso, ainda que sem o perceber, processo já longamente automatizado, também decalque, como qualquer um (daqueles)). Estes, diante do papel em branco – ou de um dos seus substitutos virtuais –, são levados a um ato de criação, revolvendo-se, ainda que as revoluções literárias exijam bem mais que escritores se revolvendo, ainda irresolvidos; já aqueles, sem a angústia típica experimentada pelos “criativos” (pena que ainda não criaram um remédio para essa angústia: no que fazem bem, já que, curados, talvez isso seja a sua morte como escritores), contentam-se em debuxar, sem deboche, esforçando-se até, o que é digno de ser louvado, por, nesse decalque, manter a retidão, evitando ao máximo as linhas mal-traçadas, mesmo que possam chamar em seu favor o fato de que se são assim traçadas a torto, é-lhes de direito que se reconheça que o “mal” desse traçado já estava num original riscado desse mesmo jeito.
Não deve ser tarefa das mais fáceis para um escritor rivalizar com um mal-traçador de linhas, mesmo quando quer emprestar honestidade ao que escreve, fazendo-se passar o autor pelo personagem, sempre tomado por uma mão invisível que o sacode todas as vezes em que identifica alguma linha com traços “maus”, mesmo sendo capaz de perceber, essa mão que não se vê, que então é desejo, é mesmo intenção do escritor dar a suas linhas esse aspecto embriagado. Tarefa não menos facilitada é para quem não se acostumou a criar, deixando de lado os decalques e partindo para um desenho mais autoral, embora pareça mais perdoável que um decalcador não possa criar do que um criador (que se supõe ser capaz de tudo, já que tira tanto do “aparente” nada) não poder, simplesmente, decalcar, algo que qualquer criança, já alfabetizada, faz, sendo que as mais precocemente talentosas fazem isso com admirável graça.
Fiz, aqui, decalques demais, forma, aliás, de encobrir (apesar de estar-me revelando assim) meus recalques: seja o de não ser um escritor, um criador de originais, seja o de, mesmo com um original me servindo como base, não fazer cópias com estilo, sequer conseguindo apresentar com retidão o que era para ser bem-pensadas mal traçadas linhas.
CHICO VIVAS
1 comentários:
Parabéns a todos os escritores pelo seu dia!
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