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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

DIA DO ÓRFÃO


MENINO – Jesus (sem, aparentemente, perceber a autorreferência)! Maria José: que dia é hoje?

MARIA JOSÉ – Ô, menino, hoje é dia do órfão.

JOSÉ – Meu Pai, Maria José, isso lá é jeito de falar com o menino? Por acaso ele não tem pai?

MARIA JOSÉ – Mas será o Benedito?

JOSÉ – Mulher, assim você me ofende. E olhe que eu te trato bem, como se fosse da família, quase como trato Maria.

MARIA JOSÉ – E eu por acaso sou algum José?

JOSÉ – Não. José sou eu. E se eu continuar com esse bate-boca com você, Maria José, vou acabar me sentindo um zé-mané.

MENINO – Maria José, o que é órfão?

MARIA JOSÉ – Vixe, Maria!

MENINO – Não xingue minha mãe, viu, Maria José.

MARIA JOSÉ – Meu Cristo! Eu só ia dizer: vixe, Maria, pergunte a teu pai.

MENINO – Eu já perguntei.

MARIA JOSÉ – E ele?

MENINO – Parece que não me ouve, sempre que Lhe pergunto.

MARIA JOSÉ – Que cruz!

JOSÉ – Que é isso, menino? Meu Jesus, desde quando eu não te dou ouvidos, meu filho?

MARIA JOSÉ – Acho, seu Zé, que o menino tava falando do outro Pai.

MARIA (chegando) – Que outro? Desde quando ele tem outro pai, mulher?

JOSÉ – É o que eu também quero saber.

MARIA JOSÉ – Cala-te boca: eu não disse nada.

MARIA – Disse sim.

MARIA JOSÉ – Não disse.

JOSÉ – Disse.

MARIA JOSÉ – Não disse

PEDRO – Alguém me chamou?

MARIA JOSÉ – (Esse pescador está atravessado em minha garganta; é uma pedra no meu sapato) Você tá chegando agora. Ouviu o galo cantar e não sabe onde.

MENINO – Afinal, alguém pode me explicar o que é um órfão?

MARIA – É só um menino (ou menina) que não tem pai.

JOSÉ – Nem mãe.

MENINO – Meu Pai do céu!

JOSÉ – Que foi que você disse, menino?

MARIA – O menino só falou por falar, homem.

JOSÉ – Menino, seu pai sou eu.

MENINO – Órfão!... Então hoje não é meu dia...

MARIA JOSÉ – Não, menino. Seu dia é amanhã. Eu até vou fazer um bolinho.

JOSÉ – E eu vou te dar um dinheirinho.

MARIA – A César o que é de César.

MENINO – Nada disso. O dinheiro é meu: e eu quero trinta moedas.

JOSÉ – Mas isso é traição.

MARIA JOSÉ – Já vi essa história. Você, menino, vai acabar não ganhando nada no seu dia.

MENINO – Prefiro a morte.

MARIA – Valha-me, Deus! Bata na boca, menino, que as palavras têm poder.

MARIA JOSÉ – E sangue de Cristo também.

JOSÉ – Calma, meu filho, isso são só palavras. Eu não vou deixar que te façam mal.

MENINO – O senhor me garante?

JOSÉ – Eu jamais vou te abandonar.

MENINO – Então, tá. Sabem o que eu queria ganhar? Um órfãozinho só para mim.

MARIA JOSÉ – Meu Redentor! Esse menino tem cada uma. E para que tu ia querer um órfãozinho, menino?

MENINO – Para brincar comigo: subir nas montanhas, derrubar as barracas dos mercadores lá no templo, colher azeitonas no Jardim das Oliveiras, andar nas águas, contar histórias...

JOSÉ – Esse menino é lavado, mas tem um bom coração.

MARIA – Puxou à mãe.

JOSÉ – Puxou ao pai.

MARIA JOSÉ – Mas se for bom demais, vão acabar crucificando o pobrezinho.

MENINO – Então, devo ser um pouquinho mal, pai?

JOSÉ – De jeito nenhum, meu filho.

MARIA JOSÉ – Mas fique esperto, menino, senão tu vai ao encontro do Pai mais cedo.

JOSÉ – Se você insistir nessas insinuações, te escorraço da minha casa.

MARIA JOSÉ (fingindo não ligar) – Ô, Madá, ô, Madalena, o peito percebeu...

MENINO – Afinal, e o meu órfão?

MARIA – Que tal todos os reinos da terra, em lugar desse seu órfãozinho?

MENINO – Não!

JOSÉ – E que tal todas as pessoas (inclusive todos os outros meninos) se ajoelhando diante de ti?

MENINO (hesitante) – Hum... Não!

MARIA JOSÉ – E pensar que esse menino já foi um cordeirinho. Agora, tá assim, respondão. Precisa de rédeas curtas: se eu fosse a mãe, mandava ele passar uns quarenta dias (e quarenta noites) lá no deserto, e sozinho.

MENINO – O diabo que ia.

MARIA JOSÉ – Vou lavar essa sua boca com vinagre.

MENINO – A conversa ainda não chegou na cozinha.

MARIA – Meu filho, o que é isso? Releve, Maria José: ele não sabe o que faz. E você, José, não diz nada?

JOSÉ – Eu, hein! Quem pariu Mateus que embalance. Tenho mais o que fazer. Tenho uma mesa com quatro cadeiras para entregar. E bem que esse menino podia me ajudar.

MARIA – Não! A missão dele é muito maior. Ele ainda vai salvar o mundo.

MARIA JOSÉ – Credo, seu Zé, dona Maria já não tá dizendo coisa com coisa.

MARIA – Esperem e verão.

MENINO – Esperem: já é verão. Tô de férias. Vou brincar de subir correndo o Calvário.

MARIA – Sozinho não.

MENINO – Eu vou com Simão.

MARIA – Que Simão?

MENINO – O cireneu.

MARIA JOSÉ – Ah, bom! Vá, meu menino. Mas cuidado com os espinhos, ou amanhã não tem festa.

Rindo, todos admiram a ingenuidade das crianças.

CHICO VIVAS

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