Ontem – e falo de um ontem mesmo, cerca de vinte e quatro horas atrás, e não jogando, figuradamente, esse mesmo dia (de ontem) para um passado que, apesar de “indefinido com exatidão”, nos remete a um tempo já enorme que passou –, a realidade podia ser vista como uma sequência de fatos, guardando entre si certa solução de continuidade, um elo que os tornava compreensíveis sob uma lógica histórica: nisso tudo, a fotografia, documento de um desses elos ou mera diversão (quando um desses elos era um dia que permitia algum divertimento), era um registro esparso. Agora, só se admite como real o que está rigorosamente fotografado, daí, portanto, que a realidade se tornou uma sequência de fotos em que, se falta uma, perde-se o elo, fazendo a história que se conta, se não ilógica (porque há uma lógica até na fantasia), difícil de ser compreendida.
Já não são nossos olhos, agindo diretamente, que captam o real, traduzindo-o, baseado num fato anterior, dando-lhe assim significado (lógico), certo de que, não havendo brusco rompimento dessa sequência, um novo, mesmo que nada original, virá a seguir, como um outro elo, nessa corrente de fatos que formam o retrato de dada realidade, ainda quando esta se mostra de difícil compreensão.
Tal qual não quiséssemos perder um só instante, com receio de que fosse esse, perdido então e impossível de ser recuperado, importante, quem sabe até justamente o mais importante de nossa vida, aquele pelo qual tanto estivéramos aguardando, não podemos mais perder uma fotografia, deixando de registrar, por todos os ângulos, o real (que pode não se confundir com a própria realidade), mantendo agora os olhos mais ocupados com esse registro secundário do que em estarmos em contato direto com a realidade: se vimos, se garantirmos mesmo que vimos (o que vimos), mas não temos disso (que vimos) uma correspondente fotografia, fica a dúvida: será que vimos?
E se nós, fotografando (sem parar), podemos flagrar, ao acaso, um outro em igual atitude, somos, simultaneamente, alvos dos flagras alheios, o que faz com que vivamos (n)um equilíbrio precário, baseado, quase que inteiramente, no fato (real) de que possuímos todos as mesmas armas, ainda que a de alguns pareça de mais longo alcance, capaz de uma “objetividade” maior, como se pudesse registrar a realidade para além do aparente, rompendo, desse modo, a fronteira do real, adentrando, eventualmente, o espaço da fantasia de cada um.
Se a nossa é limitada, comportando só certo número de lembranças, por vezes com uma cedendo lugar, antiga demais ou nova (já) em excesso, para outra, numa seleção que nem sempre consulta nosso consciente, a memória que alimenta tanta fotografia, expansível, de tão absurdamente capaz de registrar, virtualmente, tudo, reitera em nós a desconfiança (em alguns, já a certeza) de que o que se vê com os olhos é realidade enevoada, sem a mesma nitidez do real fotografado.
Olhar o passarinho!... Isso é coisa de ontem – e falo, agora, de um tempo já perdido (no próprio tempo).
CHICO VIVAS
0 comentários:
Postar um comentário