Impossível deixar de me lembrar da “Infância”. Mas, não da minha própria, e sim de uma a que só tive acesso quando a minha já se havia ido, sem, confesso, deixar saudades, embora hoje, como acontece habitualmente, ela me surja com certa nostalgia, afastado daqueles dias já por tempo suficiente para que sobre eles paire agora certa mitificação. Contudo, são inegáveis alguns sinais relutantes, espécie de objetos que, ao longo da mudança, das várias que fazemos durante a vida, nem sempre por vontade própria, caem do caminhão: ainda que meu desejo fosse de, incivilizadamente, deixá-los ali, à mão dos que creem haver utilidade pessoal para eles ou dos que, fazendo isso quase desde a infância (da qual também poderão sentir saudades, tomando-a, posteriormente, por um ideal que não vivenciaram), são pagos para livrar as ruas dessas recalcitrâncias – uma parte do lixo convencional -, ao fim, sempre acabava me virando para trás, abaixando-me e recolhendo-os, sendo esse meu gesto, ele mesmo, um desses objetos da infância que há pouco mencionei e de que não conseguia (será que já consigo?) me desfazer.
Refiro-me à Infância de Graciliano Ramos, livro de (suas) memórias. E a impressão que me causou, numa vida que segue, aparentemente, como tantas outras, mas que sua mestria em narrá-la torna-a surpreendente, única, as referência aos próprios pais. Diante de uma mãe forte (sem traços de uma fortaleza romanesca, heroica, apenas uma força que sublinha a submissão crônica), sequer havia uma pai frágil, num contraponto, literariamente, interessante, por óbvio que seja esse recurso narrativo, sendo, talvez, a imagem materna que lhe ficou a projeção, algo destorcida, algo reativa à presença do pai, como se assim ela acreditasse, com inconsciência desse ato de fé, poder melhor sobreviver em ambiente tão hostil.
E pouco se vê por parte da mãe aqueles carinhos que, em geral, adoçam infâncias amargas ou salgam o terreno estéril que se vai alastrando, precocemente, pelo coração sem esperanças. E é tocante, apesar da ausência daquela suavidade digital que se costuma associar a tudo que (nos) cala fundo, o modo realista (quem sabe se um tantinho expressionista) como, adulto, esse filho a descreve: feia (sem eufemismos-amortecedores): e não há aí uma feiura cheia de subtons, de significados ricos em interpretações metafóricas. É feia, a ponto de ele sugerir a imagem de uma caneca cheia de amassados para aproximar o leitor do retrato materno que lhe ficou, ao menos daqueles dias.
Marianos mesmo sem sermos devotadamente cristãos, a mãe ora nos é a madona da Rafael (ou de qualquer outro grande – ou mesmo pequeno – artista que não escapou ao tema, seja por falta de originalidade, num tempo em que esse motivo era corrente, seja por supostamente querer ser original, quando já ninguém se interessava por “ele”), ora é a mater dolorosa, uma mítica Pietà (de Michelangelo) que, se ficasse de pé, sentada para sempre como está, seria bem maior do que o Filho que, morto, ela insiste em carregar eternamente em seus braços de mármore – um Filho, como se sabe, ainda que não se creia, por si mesmo, incomensurável.
E quando nos flagramos feios, dizemo-nos que ou o espelho não está em seus melhores dias, estando, por conta dos seus humores especulativos, um tanto quanto invertido, ou que herdamos essa máscara (feia) justamente por nos termos afastado da uma idílica infância em que a mãe, tenha a cara que tiver, será sempre, mais que a imagem, o “real” significado da palavra “beleza”.
Que dizer da minha própria?
Mãe? Infância? Ambas?
Falta-me a mão de mestre para dizê-las feias, sem culpa, ou, sem me sentir ainda mais culpado, afirmá-las belas, jogando, assim, no lixo um gancho razoável para memórias que não hei de escrever.
CHICO VIVAS
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