Pronto e acabado.
Mas como eu, mau artesão das linhas, não dou ponto sem nó, não pararia por aqui, por mais que reafirme: pronto e acabado.
Ao se observar uma criança, pronto, eis já, como se uma repentina comichão reclamasse o imediato auxílio de mão, como se esta estivesse condicionada, sem direito à reflexão, a sempre ir em socorro das coceiras, a tentação de dizer que ali está um projeto, uma obra em curso, ainda que bem no comecinho então, vislumbrando-se, ausentes as imagens mais claras, as definições mais precisas, um futuro sempre promissor, embora a experiência, a pessoal e a do mundo (que é a soma das experiências pessoais) mostre, até com clareza chocante, com imagens de alta definição, o quanto tais promessas ficam, não raro, pelo meio do caminho, não se restringindo, essa quebra de expectativas, às crianças já, desde seu nascimento, em situação de perigo, com riscos anunciados agora para apresentação posterior (mesmo que tal “posteridade” alcance-as numa idade em que facilmente ainda se a toma como uma criança, um pouco mais crescida, é verdade), avançando, não rigorosamente com igualdade, sobre outras crianças, sobre aquelas que não “nascem perigosamente”, que não vivem, acomodadas ao conforto luxuoso ou àquele pago em incontáveis prestações, perigosamente, e das quais se espera, projeto realizado, muito, podendo estas crianças não corresponderem ao que, a sua própria revelia, se espera delas, seja por uma rebeldia (com cartão de crédito), seja porque se adaptaram demasiadamente a uma vida sem perigos, sem os quais o mundo não seria o que é – para o bem (do mundo, de todos nós) ou não.
Uma criança, no entanto, antes de rascunho bem elaborado de uma arte ainda não finalizada, está, enquanto o que é (criança que é), pronta e acabada. O que vem depois, numa sequência de etapas artificialmente definidas em nome de um didatismo comportamental, já não é coisa de criança.
Há quem ainda se comova – não sei se isso prova o caráter, alem de universal, de eternidade de uma verdadeira obra de arte ou se prova o quanto, mesmo com o passar do tempo, os apelos emocionais não variam muito, e continuamos presos a um sentimentalismo catártico, espécie de poderoso expectorante para aliviar nosso peito das culpas em catarro – com os pequenos limpadores de chaminés que povoam aquela, sempre nevoenta, Londres de Dickens, vendo nisso o grau de perversidade de uma sociedade industrial, embora, em termos mais práticos, uma indústria lucrasse mais ao inventar e fabricar limpadores de chaminés mais rápidos e eficientes que uma criança, mesmo uma rápida e eficiente, chegando mesmo à produção em série de limpadores descartáveis: e aquelas crianças, ao crescerem um pouco mais, além da boca faminta da chaminé, não o eram menos.
Tanto quanto aqueles londrinos não andavam sempre com olhos úmidos, apesar da poluição crescente das chaminés das fábricas (além das domésticas), mas compungidos por aquela infância se perdendo, nós, anacrônicas chaminés que já não vemos na cena diária no alto das casas (as fábricas ficam, em geral, longe dos nossos olhos), umedecemos nossos olhos com os relatos “espetaculares”, fechando-os (a tanta poluição visual) para os projetos em curso, para as crianças-em-progresso, para rascunhos que, vítima eu da minha própria língua, já estão, apenas com frágeis linhas desenhadas, pronto.
E está acabado.
CHICO VIVAS
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