O espírito irrequieto comunica ao corpo sua inquietação, e este, não podendo ficar parado, muda de lugar, e aí fica, até que, de novo, o espírito faça das suas, como se cultivasse na pele um bicho-carpinteiro que não o deixa ficar sossegado – e se isso se restringisse à inquietude d’alma, talvez daí surgisse uma obra de arte, um novo sistema filosófico, uma outra ciência, embora não baste ter um espírito traquina para se garantir um grande homem, ainda que aqueles que vieram a se tornar grandes assim, se não foram traquinas, quando meninos, perderam algo de sua real grandeza.
Mas, ao cochichar esse seu não poder ficar parado, diretamente, ao corpo, acaba por movimentar a história, fazendo de algumas personagens uns nômades anacrônicos, como se voltassem a uma pré-história, conscientes, no entanto, de que voltam no tempo sem a certeza de, um dia, perdidos no passado, reencontrarem-se com o presente.
No passado, Descartes, espírito dos mais buliçosos, prestes a conceber não apenas novas ideias filosóficas, mas a renovar a própria filosofia, ia de um a outro país, não esquentando lugar em nenhum, sempre em busca de tranquilidade para...pensar. Correu boa parte da (sua) Europa, indo parar na Holanda. Lá, em Amsterdã, julgou ter encontrado, enfim, seu pouso ideal: dizia ele que o povo, ali, estava tão preocupado em ganhar dinheiro, que, facilmente, deixá-lo-ia em paz.
Se fosse hoje, tadinho dele: o seu corpo devia estar muito bem preparado para ou armar sua tenda de nômade, já levantando-a, em busca de outro “camping”, levando consigo (será nas costas? na cabeça? no coração?) o próprio espírito, a verdadeira alma dessa (sua) peregrinação. Se eu dissesse, agora, olhando esse novo mundo como quem o olha de cima, como se não estivesse, eu próprio, nessa mesma história, quão “baixos” são esses países, isso seria um trocadilho com a Holanda – talvez, perdoável – e mal esconderia uma fingida objeção ao querer ganhar dinheiro; e tanto que se despreza a filosofia só porque esta não deve dar nenhum, nem aqui, nem em Amsterdã: ou será que isso é coisa do passado?!
Nada tenho contra o dinheiro. E como não estou concebendo novas ideias (não tenho cabeça para isso), uma nova ciência (não tenho conhecimento para tanto), nem uma obra de arte (coração, até que tenho algum, mas não é suficiente), pouco me importa que, na Holanda, ou em qualquer outra parte do mundo, pensem em dinheiro, desde que me deixem em paz, desde que, para ganhar o seu, não queiram me vender a paz a que, justamente (sei lá segundo qual filosofia), tenho legítimo direito.
Sou só um homem curioso – e não pretendo unificar o duplo sentido que essa frase encerra. Meu espírito também fica irrequieto, principalmente, quando tocado por uma lembrança – coisas do passado! Assim, ele comunica, em comichões, ao corpo, essa (sua) memória despertada, porém, ao contrário de um grande homem, não quero mudar; quero mesmo é ficar onde estou, e, tranquilamente, ir transferindo, da cabeça, do coração, sei lá de onde, para os dedos das mãos estas palavras, com resultado semelhante às artes de um menino traquina.
E basta isso para que eu me sinta em paz. Paz esta que eu desejaria, se conseguisse transportá-la do meu espírito para um corpo de palavras, comunicar-te, sem que ela perdesse, nesse trajeto através de estradas traiçoeiras e nas quais o menor descuido pode nos fazer perder as estribeiras, quase nos lançando numa guerra evitável, uma sequer de suas letras, chegando-te, assim, íntegra essa paz – no máximo, deixando, por onde passa, um rastro que leve de volta a casa aqueles que deixaram sua terra em busca de...paz: às vezes, guerreando, para isso.
Quanto ao dinheiro, quem nele não pensa? Afinal, nós somos, filosofando mais, filosofando menos, todos deste mundo – e dinheiro, como se sabe, apesar de ter seus intrincados mecanismos, decididamente, não é coisa do outro mundo.
CHICO VIVAS
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