Sem que se o associe, deixando em aberto, como uma trilha bíblica ainda não fechada, a possibilidade de que se trate de qualquer mar, vivo ou morto, seja um poeticamente azul, com inspiração celestial, seja vermelho esse mar, independentemente das bélicas histórias de que tenha sido testemunha, nem sempre silencioso, embora seus característicos rumores, talvez por irem e virem, numa pusilanimidade indisfarçável, não sejam suficientes para despertar os pacíficos sonolentos ou para adormecer (ainda que isto seja mais fácil do que aquilo) os que só põem sua bravura a serviço das batalhas, o mar, portanto, guarda muitos mistérios: e, provavelmente, o maior deles seja decidir quem os pôs ali.
E nem todo mistério é uma fortuna em potencial; nem todo enigma, mesmo quando solucionado, garante as soluções tão desejadas, podendo mesmo, como se se comportasse como uma boneca russa, trazer em si um enigma menor, menor em tamanho, para que pudesse ter cabido ali, seu continente então, e não porque seja um enigma de mais fácil solução, num crescendo de mistério inversamente proporcional ao decréscimo do tamanho. Assim, nem tudo que se acha – já achado ou ainda lá, à espera disso, sob o nosso ponto de vista – no fundo do mar é um verdadeiro mistério, podendo inclusive não passar de puro lixo, espécie de enigmas produzidos em série, sem critérios, sem controle de qualidade, impressos em papel impossível de ser reciclado, e só para assim atender a uma demanda voraz.
No fundo, nem tudo é mesmo mistério; é só nossa fantasia de acreditar que por trás de todas as coisas há uma grande revelação, desmerecendo as aparências em favor da coisa em si, ainda que, na prática, não se despreze, à parte a intensidade da fome, a polpa suculenta que o envolve, indo-se, direta e avidamente, ao caroço – a menos que se tome a casca, por mais fina, a ponto de se a confundir com a fruta em si, como a aparência, promovendo a carne da fruta ao em si, ficando o tal caroço, semente que é, para outras divagações: semânticas, quem sabe.
Do muito que se tem lançado ao mar, nada supera o olhar, os muitos olhares. E os olhos não se contentam em, simplesmente, ali se lançarem, boiando, como um corpo despreocupado que se deixa levar, ao sabor dos acordos tácitos firmados entre ondas e vento (embora se possa confundir corpo assim com um outro, náufrago a boiar, sem gozo desse flutuar, ainda à mercê das ondas, dos desígnios dos ventos). Quer-se emprestar ao mar um sentido todo próprio, ora enxergando-o, por menos fundo que se vá, como representação mais à mão (mais ao pé, embora não da letra, longe disso até) da eternidade do que o céu, ora como síntese de todos os mistérios do mundo, esconderijo de todos os projetos, com ou sem fundamento, que vierem a afundar.
Já sem terras disponíveis, nos lançamos ao mar, dizendo que a vida na terra não está para peixe, competindo com os próprios peixes nessa disputa por mar. E não percebemos que, como um qualquer, engolimos a isca e somos fisgados por um mistério sem solução, mas que nos vai dando pistas, alimentando em nós a ilusão de que, persistindo, haveremos de lá chegar, incapazes que nos tornamos de, nesse ponto, nos dar conta de que “lá”, por si, já é um enigma indecifrável.
Que muitos se joguem, não só de corpo, às vezes, de alma também – é a sua alma, é o seu corpo. Eu, sem tanto corpo a perder, sem alma suficiente para entrar num jogo para ganhar, vou ficando por aqui, certo de não ter passado da flor d’água: pelo menos, pode observar essa flor.
CHICO VIVAS
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