MENINO – Jesus (sem, aparentemente, perceber a autorreferência)! Maria José: que dia é hoje?
MARIA JOSÉ – Ô, menino, hoje é dia do órfão.
JOSÉ – Meu Pai, Maria José, isso lá é jeito de falar com o menino? Por acaso ele não tem pai?
MARIA JOSÉ – Mas será o Benedito?
JOSÉ – Mulher, assim você me ofende. E olhe que eu te trato bem, como se fosse da família, quase como trato Maria.
MARIA JOSÉ – E eu por acaso sou algum José?
JOSÉ – Não. José sou eu. E se eu continuar com esse bate-boca com você, Maria José, vou acabar me sentindo um zé-mané.
MENINO – Maria José, o que é órfão?
MARIA JOSÉ – Vixe, Maria!
MENINO – Não xingue minha mãe, viu, Maria José.
MARIA JOSÉ – Meu Cristo! Eu só ia dizer: vixe, Maria, pergunte a teu pai.
MENINO – Eu já perguntei.
MARIA JOSÉ – E ele?
MENINO – Parece que não me ouve, sempre que Lhe pergunto.
MARIA JOSÉ – Que cruz!
JOSÉ – Que é isso, menino? Meu Jesus, desde quando eu não te dou ouvidos, meu filho?
MARIA JOSÉ – Acho, seu Zé, que o menino tava falando do outro Pai.
MARIA (chegando) – Que outro? Desde quando ele tem outro pai, mulher?
JOSÉ – É o que eu também quero saber.
MARIA JOSÉ – Cala-te boca: eu não disse nada.
MARIA – Disse sim.
MARIA JOSÉ – Não disse.
JOSÉ – Disse.
MARIA JOSÉ – Não disse
PEDRO – Alguém me chamou?
MARIA JOSÉ – (Esse pescador está atravessado em minha garganta; é uma pedra no meu sapato) Você tá chegando agora. Ouviu o galo cantar e não sabe onde.
MENINO – Afinal, alguém pode me explicar o que é um órfão?
MARIA – É só um menino (ou menina) que não tem pai.
JOSÉ – Nem mãe.
MENINO – Meu Pai do céu!
JOSÉ – Que foi que você disse, menino?
MARIA – O menino só falou por falar, homem.
JOSÉ – Menino, seu pai sou eu.
MENINO – Órfão!... Então hoje não é meu dia...
MARIA JOSÉ – Não, menino. Seu dia é amanhã. Eu até vou fazer um bolinho.
JOSÉ – E eu vou te dar um dinheirinho.
MARIA – A César o que é de César.
MENINO – Nada disso. O dinheiro é meu: e eu quero trinta moedas.
JOSÉ – Mas isso é traição.
MARIA JOSÉ – Já vi essa história. Você, menino, vai acabar não ganhando nada no seu dia.
MENINO – Prefiro a morte.
MARIA – Valha-me, Deus! Bata na boca, menino, que as palavras têm poder.
MARIA JOSÉ – E sangue de Cristo também.
JOSÉ – Calma, meu filho, isso são só palavras. Eu não vou deixar que te façam mal.
MENINO – O senhor me garante?
JOSÉ – Eu jamais vou te abandonar.
MENINO – Então, tá. Sabem o que eu queria ganhar? Um órfãozinho só para mim.
MARIA JOSÉ – Meu Redentor! Esse menino tem cada uma. E para que tu ia querer um órfãozinho, menino?
MENINO – Para brincar comigo: subir nas montanhas, derrubar as barracas dos mercadores lá no templo, colher azeitonas no Jardim das Oliveiras, andar nas águas, contar histórias...
JOSÉ – Esse menino é lavado, mas tem um bom coração.
MARIA – Puxou à mãe.
JOSÉ – Puxou ao pai.
MARIA JOSÉ – Mas se for bom demais, vão acabar crucificando o pobrezinho.
MENINO – Então, devo ser um pouquinho mal, pai?
JOSÉ – De jeito nenhum, meu filho.
MARIA JOSÉ – Mas fique esperto, menino, senão tu vai ao encontro do Pai mais cedo.
JOSÉ – Se você insistir nessas insinuações, te escorraço da minha casa.
MARIA JOSÉ (fingindo não ligar) – Ô, Madá, ô, Madalena, o peito percebeu...
MENINO – Afinal, e o meu órfão?
MARIA – Que tal todos os reinos da terra, em lugar desse seu órfãozinho?
MENINO – Não!
JOSÉ – E que tal todas as pessoas (inclusive todos os outros meninos) se ajoelhando diante de ti?
MENINO (hesitante) – Hum... Não!
MARIA JOSÉ – E pensar que esse menino já foi um cordeirinho. Agora, tá assim, respondão. Precisa de rédeas curtas: se eu fosse a mãe, mandava ele passar uns quarenta dias (e quarenta noites) lá no deserto, e sozinho.
MENINO – O diabo que ia.
MARIA JOSÉ – Vou lavar essa sua boca com vinagre.
MENINO – A conversa ainda não chegou na cozinha.
MARIA – Meu filho, o que é isso? Releve, Maria José: ele não sabe o que faz. E você, José, não diz nada?
JOSÉ – Eu, hein! Quem pariu Mateus que embalance. Tenho mais o que fazer. Tenho uma mesa com quatro cadeiras para entregar. E bem que esse menino podia me ajudar.
MARIA – Não! A missão dele é muito maior. Ele ainda vai salvar o mundo.
MARIA JOSÉ – Credo, seu Zé, dona Maria já não tá dizendo coisa com coisa.
MARIA – Esperem e verão.
MENINO – Esperem: já é verão. Tô de férias. Vou brincar de subir correndo o Calvário.
MARIA – Sozinho não.
MENINO – Eu vou com Simão.
MARIA – Que Simão?
MENINO – O cireneu.
MARIA JOSÉ – Ah, bom! Vá, meu menino. Mas cuidado com os espinhos, ou amanhã não tem festa.
Rindo, todos admiram a ingenuidade das crianças.
CHICO VIVAS