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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

DIA DO ATOR



Via-se em frente ao espelho. E não era a primeira vez, nem a segunda, e de tantas vezes que já se vira assim, quase não se via mais a si, quando em frente ao espelho, ocasião em que qualquer um, mesmo que não seja a primeira vez em que se mira, costumeiramente se vê, às vezes se perdendo no mistério que é se ver assim, tão real num reflexo, tão fictício num espelho.

E não que ela fingisse – e de “fingir” ela entendia, até porque fazia da “arte de enganar” o seu mister, ofício cotidiano, quase diário, e só não o é por causa dos dias em que não há, de fato, espetáculo, fora se tomarmos como tal a própria vida, num artifício retórico com pretensões poéticas que faz do mais prosaico viver um grande teatro: ela era uma atriz.

Como estava, estava no fim, mas não da carreira e sim da função do dia. Ali, sem mais se deixar encantar pela duplicidade no espelho, talvez porque, ao longo da carreira, ainda relativamente curta, já experimentara multiplicidades maiores, sem sequer o auxílio polido da face lavada do espelho seco. O que fazia era se desvestir de sua personagem, seminua já, embora isso o espelho não revelasse, no máximo deixando à mostra seus seios.

Tirava do rosto a máscara da hora, há mais de uma hora já com ela, embora conheça o esforço de em uma mesma hora pôr e arrancar da própria face diversas máscaras – e isso sem contar com sua face-base, sem base, maquiagem nenhuma, tão-somente com sua arte à flor da pele, jovem ainda o bastante para exibir seu viço, apesar do que fazem as máscaras regulares com a vivacidade da cútis, porque ser muitas há de lhe trazer algum ônus, e este costuma se mostrar “de cara”.

O nome da personagem pouco (lhe) importa: é só mais uma! O nome da atriz, que se julga de alguma importância na constelação de estrelas celebérrimas, não nos é importante. Como se chama o teatro, que importância isso tem? E, aqui, eu nem mesmo tenho a importância que se paga para se ver a atriz em ação, mesmo quando atua parada, contemplativa, interpretando, com economia de gesto, com a máscara de pó que se cola ao seu rosto de carne, como se um e outra não fossem o mesmo barro primordial.

Como se põe a nu quando sobe no palco, a maquiagem avança até seu colo, vazio de filhos, carregado de peito(s), seco de leite, potencialmente vaca essa mulher que, sendo o que é, pode tanto ser santa quanto pode amamentar os filhos das outras, santas estas ou não.

Numa caixinha, vai colocando as peças que tão há pouco a ajudavam a compor quem ela não é, mesmo que o fosse enquanto era: e ao tirar, com verdade incontestável, os cílios postiços, longos demais para serem de mentira, por descuido, trouxe para seu porta-adereços uma lágrima genuinamente sua, que não fazia parte do seu teatro, e que por ali andava a aguardar um momento para correr para baixo, presa como estava pela falta de tempo da atriz para viver sua próprias verdades.

Não percebeu que arrancara de si um choro que não sentiu. E se mais tarde, na próxima apresentação, encontrar seus cílios encharcados, não desvendará o mistério que conseguiu molhar aqueles pelos guardados com tamanho cuidado, pois ela sabe da importância dos olhos para dar estatura de verdade às mentiras escrita para o palco.

Ao se livrar, escrava da pressa que a faz querer viver com velocidade, não se dando conta de que poucas mulheres podem, como ela, “viver tanto”, do batom resistente em seus lábios já naturalmente carmim, arrancou-lhes, tirando, claro, a si mesma, um sorriso, e também o guardou na caixinha de acessórios para as sua farsas, seus dramas, suas tragédias, suas comédias (em que mais raramente se veem sorrisos, não se falando aqui nos da plateia, e sim nos da própria atriz) e outros gêneros ainda indefinidos de teatro.

Lá, na caixinha, o sorriso e a lágrima da mesma atriz se encontram, encontro raro, e não só porque um brilha nos lábios e a outra reluz no olhar, mas porque nem todo público entende um espetáculo em que chove e faz sol ao mesmo tempo, querendo, porque pagou, e isso lhes garante grande importância, saber se é para tirar o chapéu ou para se abrigar da tempestade, não sabendo como agir nessa simultaneidade de climas.

O sorriso, não podendo fazer outra coisa, sorri; e a lágrima, atriz muito limitada, dada a um gênero muito específico, chora, para desespero do sorriso que achou que não estava, então, agradando – e não menos desconsolada ficou a lágrima por tomar, diante do seu choro, aquele sorrisinho como uma zombaria a sua atuação.

LÁGRIMA – Ris de mim?

SORRISO – Não. É que só rio, não sei (a)mar.

LÁGRIMA – Como assim?

SORRISO – Desculpa-me! Quis apenas brincar, desanuviar as...lágrimas.

LÁGRIMA – Então desejas me matar?

SORRISO – Não. Mas, a cada palavra minha, enrolo-me ainda mais na língua. Desejei fazer poesia ao dizer que só-rio. Na verdade, aquilo não é mentira. É que sendo o que sou – e eu sou só sorrisos, o tempo todo – só sei ser assim, e nada mais. E tu, por que choras?

LÁGRIMA – Pelo mesmo motivo pelo qual só ris, mas isso visto pelo verso.

SORRISO – Ah! também queres fazer poesia!?

LÁGRIMA – Não. É que se só ris por seres sorriso, eu, lágrima que sou, só choro.

SORRISO – E as lágrimas de alegria? Eu próprio sei disso porque algumas vezes em que tive de sorrir, puxados os lábios, nos cantos, cada um para seu lado, veio de lá uma lágrima, embora eu não entendesse muito bem qual o sentido de ela estar ali.

LÁGRIMA – Tens razão. Eu mesma já fui chamada para acentuar alegrias – e, em alguns casos, devo admitir, tudo aquilo um fingimento só me parecia. E a razão para minha entrada em cena é porque assim ficava melhor o espetáculo. Quando sou lágrima de verdade, sem nada de fantasia, é uma tristeza só.

SORRISO – E vê: tão perto um do outro, habitando a mesma cara, e esta é a primeira vez em que nos encontramos.

LÁGRIMA – É verdade. Esta é a primeira vez que vejo um sorriso assim de tão perto.

SORRISO – E que achas de mim?

LÁGRIMA – Largo.

SORRISO – Só (risos!)?

LÁGRIMA – Aberto.

SORRISO – E nada mais?

LÁGRIMA – Cheio de luz. E para de uma vez de me perguntar a teu respeito.

SORRISO – Não queres saber o que acho de ti?

LÁGRIMA – Isso não vai alterar em nada minha natureza tristonha.

SORRISO – Como não mudou o meu destino saber o que pensavas de mim. E então?

LÁGRIMA – Dize, se o quiseres.

SORRISO – Acho-te demasiadamente contida.

LÁGRIMA – Só (e sem risos, porque, afinal, é uma lágrima que se preza)?

SORRISO – Carregada de umidade também.

LÁGRIMA – Mas isso se percebe até de olhos fechados. Nada mais?

SORRISO – Para quem não ligava para o que eu pensava já queres saber muito

LÁGRIMA – Estamos aqui, em meio a cílios falsos em que já me dependurei de verdade, em meio a maquiagem diversa que ora me acentuava, ora me represava. Até que outra vez entremos em ação, tu a rires e eu a chorar, que nos resta, senão falar de nós ou nos calarmos de vez?

SORRISO – Será que seremos o que somos agora, para sempre?

LÁGRIMA – Quando vim parar nos olhos de uma atriz, tive esperança de que, com a mutabilidade própria de sua natureza artística, eu pudesse, como ela, ser também outras, mas não outras lágrimas, que nós somos todas muito iguais, variando só as faces. No entanto, já não acredito mais que venha a ser algo além do que sou: lágrima.

SORRISO – Se é assim para ti, não será diferente para mim, embora a proximidade da língua me permita conhecer outros sentidos para o que sou, sem, porém, deixar de ser o que sou: à lágrima, isso é certo, nunca hei de chegar.

LÁGRIMA – A ti, sorriso, eu até já cheguei, mas me perdi num canto qualquer, confundida depois com a água da boca.

SORRISO – Por falar nisso, sabes o que é beijar?

LÁGRIMA – O olho me preserva dessas cenas ao se fechar na hora agá. Tu sabes o que é sonhar?

SORRISO – Sonhar, sonhar...

LÁGRIMA – Eu sei.

SORRISO – Então, conta-me o que é sonhar!

LÁGRIMA – Pois bem: sonhar é...

Nesse instante, a atriz ficou completamente despida, só mulher, sem saber mais que era. Fechou, então, a caixinha, pondo fim àquele tácito diálogo do sorriso com a lágrima, até, pelo menos, que, novamente, as cortinas se abram. Como toda atriz é também acessório do espetáculo, mesmo quando acessório principal, fechado, por esta noite, o teatro, até a próxima...

CHICO VIVAS

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