Share

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

DIA DA BAILARINA





A moça de corpo perfeito rodopiava na ponta dos pés sobre o ângulo enviesado do espaldar de uma cadeira que se equilibrava, por sua vez, hesitante nessa brincadeira circense, num único pé, e assim sobre uma mesa plenamente assentada, com a firmeza dos seus quatro apoios clássicos, no chão: mesa esta que não se movia diante da cena dessa corajosa dançarina na ponta da sapatilha gasta de tanto ensaiar a vida, coreografia exigida às primeiras-bailarinas de qualquer corpo...de baile.


Então, vem um vento forte – e logo se pensa: desequilibrou a moça que faz parte do perfeito corpo que baila. Não! O vento sopra e aumenta a velocidade das voltas que ela própria dá, levando consigo a cadeira a, cada vez mais, rodopiar na ponta dos seus pés sem dedos, descalça, sem calços, sem calos, muda bailarina treinada na dança das cadeiras e do ventre, sem ancas, com molejo, sem cintura, com reboladinhas de moça – mesmo que nem sempre feitas à perfeição que se lhe exige.

Por mais que gire, como um pião sem freio, a cadeira que leva a bailarina, sem a conduzir, não altera a natureza da mesa, com todos os seus pés, como matrona solene, postos sobre o chão, sem direito a tonturas, a vertigens, a perder a cabeça, que, aliás, a mesa não tem, embora uma cadeira possa lhe ficar à cabeceira.

O chão, nesse imóvel, sustenta a mesa, a cadeira, a moça que dança e que vacila quando o vento a beija à força e solta seus cabelos, então presos num coque no alto da cabeça, desarmando o cuidadoso penteado, espalhando os fios sobre o rosto perfeito, cobrindo seus olhos, que piscam.

Aí entram as mãos, e logo afastam os cabelos revoltados de sua face afogueada por tantas idas e vindas. Mas esse movimento inesperado, não calculado nos ensaios árduos, à custa de calos na ponta dos pés, desequilibra sua dança, faz com que erre o pé no ângulo do encosto da cadeira-bailarina, transmitindo-lhe o impulso discordante, abalando seu sutil bailar numa perna só, torneada por exímio artesão, até que, finalmente, cai: primeiro, a cadeira que dava voltas sobre a mesa; a seguir, a moça, perdendo o prumo.

A mesa, no entanto, praticamente, não se abalou. O chão, do mesmo jeito, não saiu do (seu) lugar. Não houve lágrimas no rosto da dançarina – que, diga-se, pouco se machucou. Da cadeira, não se esperava mesmo nenhum choro, embora tenha quebrado uma de suas pernas desenhadas, apesar da madeira firme que há muito lhe dá corpo.

A bailarina, como se numa caixa de música, quando acaba a corda e finda-se a música, parecia um corpo inerte, de madeira, bem torneado é verdade (sabe-se lá pelas mãos de que coreógrafo exigente, em tantos ensaios), vai, pausadamente, voltando à vida, calada. Levanta-se; tenta levantar a cadeira – que não fica de pé por agora lhe faltar um dos seus. A mesa assiste a tudo e não as assiste em nada. O chão, o imóvel, nada fazem não.

A cadeira é colocada num canto, destacada, por ironia, para lembrar o perigo que agora representa para quem seu corpo, perfeito ou não, queira nela descansar. A mesa olha-a de revés. O chão é o mesmo de sempre. A moça, porém, move-se algo manca, tentando aprumar-se nos dois pés, não dando olhos para os velhos calos nem para os novos machucados (que parecem, nela, já nasceram antigos), e olha em volta, já imaginando uma outra dança.

Sobe na mesa, mas crê que isso é uma chã exibição, aquém do seu talento. Quer algo mais original. Afasta a mesa. Tem agora sob seus olhos todo o chão. Vai ao centro, que calcula com rapidez, mesmo que sem exatidão. Fica na ponta dos pés, sentindo os calos nos dedos e...espera acabar a música e esgotar-se a corda dessa enorme caixa de música que é o (seu) mundo. Toma a corda, pendura o silêncio em seu próprio pescoço comprido de madona maneirista, e se enforca.

Magistral essa primorosa bailarina! Dança com tamanha perfeição a dança da vida, que nem mesmo seus pés, seus dedos parecem tocar o chão nesse seu solo-nação.

Aplausos para a estrela! Aplausos de pé. Aplausos, claro, com as mãos daqueles que, levantando-se das suas cadeiras, mantêm-se presos, ao contrário dela, ao chão: porque, além de bailarina, ela é “primeira”.


CHICO VIVAS

0 comentários:

Postar um comentário

 
Related Posts with Thumbnails

Seguidores

My Blog List

Marcadores

Abrir o coração (1) Adulto (1) Ajuste de contas (1) Alfaiate (1) Alienação do trabalho (1) Alimentação (1) Alimento (1) Amante (1) Amigo (1) Amizade (2) Amor em cada porto (1) Anjo (1) Anjo exterminador (1) Anjo-da-guarda (1) Apertar o cinto (1) Aquiles (1) Arquitetura (1) Arrmesso de cigarro (1) Arte (1) Astronauta (1) Atriz (1) Bailarina (1) Balconista (1) Balzac (2) Banana (1) Barroco (1) Bernard Henri-Levy (1) Boa forma (1) Bolo de dinheiro (1) Bombeiro (1) Bondade (1) Botões (1) Brás Cubas (1) Cachorro sem dono (1) Caetano Veloso (1) Café (1) Café com açúcar (1) Café puro (1) Caminhos desconhecidos (1) Cão (1) Capadócia (1) Capadócio (1) Cara de anjo (1) Caridade (1) Carmem Miranda (1) Carta (1) Carta na manga (1) Cartão-postal (1) Cartas (1) Carteiro (1) Cartógrafo (1) Casados (1) Caso Dreyfuss (1) Cauby Peixoto (1) Cecília Meireles (1) Celulares (1) Chaplin (1) Chuva (1) Circo (2) Cliente (1) Coelho na cartola (1) Comida (1) Compositor (1) Compulsão (1) Construção (1) Consumo (1) Conteúdo adulto (1) Coração (1) Cordialidade (1) Coreografia (1) Corte-e-costura (1) Criação do mundo (1) Criatividade (1) Criativos (1) Cruz (1) Culto ao corpo (1) Cura (2) Cura da Aldeia (1) Dança (1) Datilografia (1) Datilógrafo (1) Democracia (1) Deus (1) Dia da Abolição da Escravatura (1) Dia da alimentação (1) Dia da amante (1) Dia da amizade (1) Dia da árvore (1) Dia da bailarina (1) Dia da banana (1) Dia da caridade (1) Dia da chuva (1) Dia da criança (1) Dia da criatividade (1) Dia da cruz (1) Dia da democracia (1) Dia da família (1) Dia da fotografia (1) Dia da infância (1) Dia da lembrança (1) Dia da liberdade de imprensa (1) Dia da Língua Portuguesa (1) Dia da mentira (1) Dia da pizza (1) Dia da Poesia (1) Dia da preguiça (1) Dia da propaganda (1) Dia da telefonista (1) Dia da tia solteirona (1) Dia da velocidade (1) Dia da vitória (1) Dia da voz (1) Dia das mães (3) Dia das saudações (1) Dia de Natal (1) Dia de Santo Antônio (1) Dia de São João (1) Dia de São Jorge (1) Dia do adulto (1) Dia do alfaiate (1) Dia do amigo (2) Dia do anjo-da-guarda (1) Dia do Arquiteto (1) Dia do artista plástico (1) Dia do astronauta (1) Dia do ator (1) Dia do balconista (1) Dia do bombeiro (1) Dia do café (1) Dia do cão (1) Dia do cardiologista (1) Dia do cartão-postal (1) Dia do carteiro (1) Dia do cartógrafo (1) Dia do circo (1) Dia do cliente (1) Dia do compositor (1) Dia do contador (1) Dia do datilógrafo (1) Dia do dinheiro (1) Dia do disco (1) Dia do encanador (1) Dia do escritor (2) Dia do esporte (1) Dia do estudante (1) Dia do filósofo (1) Dia do fotógrafo (1) Dia do goleiro. Dono da bola (1) Dia do intelectual (1) Dia do inventor (1) Dia do leitor (1) Dia do mágico (1) Dia do mar (1) Dia do marinheiro (1) Dia do Museólogo (1) Dia do nutricionista (1) Dia do órfão (1) Dia do palhaço (1) Dia do panificador (1) Dia do Pároco (1) Dia do pescador (1) Dia do poeta (1) Dia do pombo da paz (1) Dia do professor (1) Dia do profissional de Educação Física (1) Dia do silêncio (1) Dia do soldado (1) Dia do solteiro (1) Dia do sorriso (1) Dia do telefone (1) Dia do trabalho (2) Dia do tradutor (1) Dia do trigo (1) Dia do vendedor de livros (1) Dia do vidraceiro (1) Dia do vizinho (1) Dia dos Pais (1) Dia mundial do rock (1) Dia Universal de Deus (1) Dinheiro (1) Doença (1) Doistoiévski (1) Ecologia (1) Encanador (1) Enigmas (1) Entrando pelo cano. Desencanar (1) Escravo da palavra (1) Escrever (1) Escritor (2) Espécie em extinção (1) Esporte (1) Esquecimento (1) Estado civil (1) Eterno estudante (1) Família Desagregação familiar (1) Fardos (2) Fernando Pessoa (1) Filosofia (2) Filósofo (1) Florbela Espanca (1) Fogueira (1) Fogueira das Vaidades (1) Fome (1) Fonte dos desejos (1) Fotografia (1) Fotógrafo (1) França (1) Freguês (1) Ganhar o pão com o próprio suor (1) Gentiliza (1) Gianlorenzo Bernini (1) Gourmand (1) Gourmet (1) Graciliano Ramos (1) Grandes autores (1) Guerra (2) Guimarães Rosa (1) Hércules (1) Ideal de paz (1) Ideia pronta (1) Imaginação (1) Imprensa (1) Imprensa livre (1) Infância (2) Infância perdida (2) Ingmar Bergman (1) Intelectual (1) Invenção (1) Inventor (1) Irmãos Karamázovi (1) Isaurinha Garcia (1) Jardim das Cerejeiras (1) Jesus (1) Jogo de palavras (1) José (1) Juventude (1) Lado bom das coisas (1) Lágrima (1) Leitor (1) Lembrança (1) Ler a si mesmo (1) Letra e música (1) Levantamento de copo (1) Liberdade (2) Liberdade de expressão (1) Liberdade de pensamento (1) Língua (1) Língua Portuguesa (1) Livros (1) Loucura (1) Luta (1) Machado de Assis (1) Mãe (2) Magia (1) Mágico (1) Mal-traçadas linhas (1) Mania de perseguição (1) Mapas (1) Máquina de escrever (1) Mar (1) Marcel Proust (1) Maria (1) Marinheiro (1) Medicina (1) Médico (1) Médico de alma (1) Memória (1) Memórias (1) Mentira (1) Mesa (1) Metamorfose ambulante (1) Mistérios (1) Misticismo (1) Morte (1) Mundo da lua (1) Museu (1) Natal (1) Navegação (1) Navegação é preciso (1) Nêga (1) Negro (1) O Êxtase de Santa Tereza de Bernini (1) O Garoto (1) Órfão (1) Os doze trabalhos de Hércules (1) Pai (1) Palavras (1) Palhaço (1) Pão (2) Pão de cada dia (1) Paradoxo de Zenão (1) Pároco (1) Paz (1) Peito aberto (2) Pensamento (1) Pescador de homens (1) Pescador de ideia (1) Picco de la Mirandola (1) Pizza (1) Poesia (2) Poeta (1) Pombo da paz (1) Praga de mãe (1) Preço de banana (1) Preguiça (1) Professor (1) Propaganda (1) Propaganda é a alma do negócio (1) Psicologia (1) Razão (1) Realidade (1) Referências bíblicas (1) Religião (1) Rock (1) Rock and roll (1) Sabedoria (1) Saber (1) Santa Tereza de Ávila (1) Santo Antônio (1) São Jorge (1) São Miguel (1) São Paulo aos Coríntios (1) Satisfação (1) Saudação (1) Saudade (1) Shakespeare (1) Soldado (1) Solidão (1) Solteiro (1) Solteirona (1) Sorriso (1) Tântalo (1) Tcheckov (1) Telefone (1) Telefonista (1) Tempo (1) Tereza de Ávila (1) Tirania (1) Toques de celular (1) Torre de Babel (1) Trabalhador em teatro (1) Tradutor (1) Trigo (1) Trocadilho (1) Truque (1) Tudo acaba em pizza (1) Velhice (1) Velocidade (1) Vendedor (1) Vendedor de livros (1) Verdades (1) Victor Hugo. Oscar Wilde (1) Vida (1) Vida amarga (1) Vidraceiro (1) Vidro (1) Vizinhança (1) Vizinho (1)