
A moça de corpo perfeito rodopiava na ponta dos pés sobre o ângulo enviesado do espaldar de uma cadeira que se equilibrava, por sua vez, hesitante nessa brincadeira circense, num único pé, e assim sobre uma mesa plenamente assentada, com a firmeza dos seus quatro apoios clássicos, no chão: mesa esta que não se movia diante da cena dessa corajosa dançarina na ponta da sapatilha gasta de tanto ensaiar a vida, coreografia exigida às primeiras-bailarinas de qualquer corpo...de baile.
Então, vem um vento forte – e logo se pensa: desequilibrou a moça que faz parte do perfeito corpo que baila. Não! O vento sopra e aumenta a velocidade das voltas que ela própria dá, levando consigo a cadeira a, cada vez mais, rodopiar na ponta dos seus pés sem dedos, descalça, sem calços, sem calos, muda bailarina treinada na dança das cadeiras e do ventre, sem ancas, com molejo, sem cintura, com reboladinhas de moça – mesmo que nem sempre feitas à perfeição que se lhe exige.
Por mais que gire, como um pião sem freio, a cadeira que leva a bailarina, sem a conduzir, não altera a natureza da mesa, com todos os seus pés, como matrona solene, postos sobre o chão, sem direito a tonturas, a vertigens, a perder a cabeça, que, aliás, a mesa não tem, embora uma cadeira possa lhe ficar à cabeceira.
O chão, nesse imóvel, sustenta a mesa, a cadeira, a moça que dança e que vacila quando o vento a beija à força e solta seus cabelos, então presos num coque no alto da cabeça, desarmando o cuidadoso penteado, espalhando os fios sobre o rosto perfeito, cobrindo seus olhos, que piscam.
Aí entram as mãos, e logo afastam os cabelos revoltados de sua face afogueada por tantas idas e vindas. Mas esse movimento inesperado, não calculado nos ensaios árduos, à custa de calos na ponta dos pés, desequilibra sua dança, faz com que erre o pé no ângulo do encosto da cadeira-bailarina, transmitindo-lhe o impulso discordante, abalando seu sutil bailar numa perna só, torneada por exímio artesão, até que, finalmente, cai: primeiro, a cadeira que dava voltas sobre a mesa; a seguir, a moça, perdendo o prumo.
A mesa, no entanto, praticamente, não se abalou. O chão, do mesmo jeito, não saiu do (seu) lugar. Não houve lágrimas no rosto da dançarina – que, diga-se, pouco se machucou. Da cadeira, não se esperava mesmo nenhum choro, embora tenha quebrado uma de suas pernas desenhadas, apesar da madeira firme que há muito lhe dá corpo.
A bailarina, como se numa caixa de música, quando acaba a corda e finda-se a música, parecia um corpo inerte, de madeira, bem torneado é verdade (sabe-se lá pelas mãos de que coreógrafo exigente, em tantos ensaios), vai, pausadamente, voltando à vida, calada. Levanta-se; tenta levantar a cadeira – que não fica de pé por agora lhe faltar um dos seus. A mesa assiste a tudo e não as assiste em nada. O chão, o imóvel, nada fazem não.
A cadeira é colocada num canto, destacada, por ironia, para lembrar o perigo que agora representa para quem seu corpo, perfeito ou não, queira nela descansar. A mesa olha-a de revés. O chão é o mesmo de sempre. A moça, porém, move-se algo manca, tentando aprumar-se nos dois pés, não dando olhos para os velhos calos nem para os novos machucados (que parecem, nela, já nasceram antigos), e olha em volta, já imaginando uma outra dança.
Sobe na mesa, mas crê que isso é uma chã exibição, aquém do seu talento. Quer algo mais original. Afasta a mesa. Tem agora sob seus olhos todo o chão. Vai ao centro, que calcula com rapidez, mesmo que sem exatidão. Fica na ponta dos pés, sentindo os calos nos dedos e...espera acabar a música e esgotar-se a corda dessa enorme caixa de música que é o (seu) mundo. Toma a corda, pendura o silêncio em seu próprio pescoço comprido de madona maneirista, e se enforca.
Magistral essa primorosa bailarina! Dança com tamanha perfeição a dança da vida, que nem mesmo seus pés, seus dedos parecem tocar o chão nesse seu solo-nação.
Aplausos para a estrela! Aplausos de pé. Aplausos, claro, com as mãos daqueles que, levantando-se das suas cadeiras, mantêm-se presos, ao contrário dela, ao chão: porque, além de bailarina, ela é “primeira”.
CHICO VIVAS
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