O dono da bola, que deveria ser a bola da vez, o dono do pedaço, curiosamente – e eu não estou chutando –, é como um bola-murcha, tido por outros, os sem-bola, com condescendência fora do comum, como jogador tão-somente por ser dono já se sabe do quê, daquilo que, ausente, ainda que seja uma entre tantos jogadores, não há partida. E mesmo assim, porque condescendência tem limite, aceito, entre risinhos humilhantes, como goleiro: é pegar ou largar – trocadilho humilhante à parte.
É como se o goleiro estivesse longe de ser essencial, sendo não mais que um mero pegador de bola, só diferindo do gandula gorducho (que, sem ser dono da bola, contenta-se em ficar à margem do jogo) pela posição que ocupa, achando-se até o máximo por estar sob a trave, sentindo-se participante, mesmo que em seu íntimo, sem autocondescendência, diga para si que o espetáculo de verdade se passa na grande área, até no meio do campo, embora – a regra é clara – os momentos mais emocionantes sejam aqueles em que a bola, chutada como uma qualquer, passando de pé em pé como se fosse uma qualquer que passa de mão em mão, desloca-se, ameaçadoramente, em direção ao gol do adversário.
É (quase) mítico, cinematográfico com certeza, o medo do goleiro diante do pênalti, iminente gol, um instante, fugidio como todos, em que a vitória ou a derrota podem depender de um movimento, de um reflexo condicionado sem tempo para “se isso, se aquilo”, exigindo essa hora fatídica que se tome uma decisão, assumindo-se os louros ou os ônus.
Quando um goleiro não tem trabalho, passando quase toda a partida sem ser requisitado, tal qual se o jogo se passasse a léguas de sua trave, numa trama em que se enredou por ser o dono da bola e por, supostamente, ter metido os pés pelas mãos, ou o contrário, já que são elas que podem lhe dar fama, e não eles, mesmo que se tenha muito bem os próprios pés no chão, é sinal de que seu time está se saindo melhor, ainda que melhor em se defender do que, atacando de frente, em encarar o gol rival.
Possuindo a bola, damos as cartas. Mas, iletrados os jogadores, sobra-nos o papel de mero distribuidor, fazendo isso com tamanho zelo que se reserva o papel de goleiro, tendo chegado a isso não por se avaliar melhor nessa posição, mas, completado o elenco, por exclusão, porque os outros, ante a possibilidade de terem de agarrar a bola, dão de costas, preferindo, talvez mais chantagistas do que sinceros (e há os chantagistas sinceros), abandonar o campo, ainda que torcendo para que esse seu gesto dê início a uma batalha campal que só terminará com o confisco, em nome da paz, da bola e a expulsão, sem direito a um cartão de despedida ou a um rubor facial pelo complô armado, do seu dono – ex-dono, a essa altura do “campeonato”.
Agarrar a bola pode significar vitória a caminho. Dar tratos à bola pode ser um passo seguro rumo à loucura total. Não bater bem da bola pode ser a aceitação razoável de ser goleiro, sob o risco de, insistindo em outra posição, pelo abandono solidariamente tramado, acabar como a bola da vez – só que, dessa vez, chutado fora.
E um goleiro solitário é o máximo da exclusão.
CHICO VIVAS
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