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terça-feira, 20 de abril de 2010

DIA DO DISCO


Por vezes, mesmo quando se quer dar com os dentes nela, em afiada e incisiva decisão, a língua trava, sem que para isso seja(m) necessário(s) um tigre, dois tigres, três “trigues” sorrindo arrogantemente ao nos ver caindo seu sua felina armadilha. A língua como que, tal qual um teimoso convicto, teimoso por princípio, chegando, por conta disso, a teimar sem maior convicção, não sai do lugar: para voltar no tempo, entrando numa máquina de nostalgias, comporta-se como um disco arranhado, insistentemente na mesma faixa, havendo espaço de sobra para outras, verdadeira música para ouvidos que não aguentam mais a mesma cantilena, mesma cantilena, mesma cantilena...


Se os discos podiam ser quebrados, como quaisquer bolachas, desde as recém-saídas do forno (passando desse cálido útero de vinil para o inferno das críticas endiabradas) até as bolachas já quase mofadas, há tanto que esfriaram, hoje, assumem a estatura, por mais chatos que continuem sendo, de eternidade, recebendo cuidados antes não imaginados, temendo-se mesmo que a agulha, diamante sem maior valor, acabe por arranhar sua vaidade de long-play, ainda que seja justamente esse contato que lhes dê vida, que lhes dê voz, que faça com que alguém pare para lhes dar ouvidos.


Costuma-se atribuir certa venalidade a quem tem duas caras, como se estivesse sempre pronto a negociar com sua sinceridade, havendo cara para diversas situações, com olhares de lado, em atitudes zarolhas, que se multiplicam para gente assim. Já os discos mudam de lado com facilidade, e até se os louva por isso, ainda que se tome, provavelmente por respeito à hierarquia-de-cartilha, por obediência ao ABC, o lado A como convencional, mesmo que seja aí em que se encontrem as maiores novidades, enquanto se reserva ao lado B certa tolerada e bem-vinda rebeldia.


Trocando em miúdos, bem que eu poderia, num gesto carinhoso, tantas palavras guardar, amontoando-as ao lado das sobras de tudo que chamam lar, sem recorrer, portando faixa de saudoso, a um disco de Pixinguinha sim, que talvez ninguém mais se impressione com isso, estanhando mesmo tanto apego a um chorão de marca maior, tanto choro por tão pouco, por um chorinho pelos cantos.


Como um sonho-de-valsa, os discos já despertavam prazer, mudos ainda, vitrola com prato vazio, pronto para girar até a tontura (às vezes, numa tortura de dar dó), ao serem tirados, capa já ao lado, do invólucro (de) plástico, antes de chegar ao bombom principal. Com o tempo, como se foram as anáguas (ou mesmo as calcinhas de Kátia Flávia: puro Exocet), foi-se o invólucro, e os discos, prezados ainda, já não tinham, entre si e as rudezas interiores de uma capa exteriormente bonita, nenhuma proteção.


Desprotegidos, foram-se. Desprotegida a reprodução atual (autoral), reproduzida em malthusiana geometria, é coisa de perder a conta, contada em gigabyte. O que era grande, nessa incessante fábrica de “miudezas”, armarinho de miniaturas, concentrou-se, com vantagens sensíveis. Desvantagem, ao menos para a língua, é a inexpressividade de se chamar alguém, só por estar-se repetindo, de disco arranhado, alguém como eu, que insisto em não ceder...à síntese, sempre trocando o já pouco em muitos miúdos.


CHICO VIVAS

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