De cara – limpa: nunca fui cara-pintada, maquiado, “lampeduzianamente” (se é que esse advérbio é possível), de Tancredi, num “Plus ça change plus c’est la même chose” –, não sei o apito que toco aqui, nem mesmo acolá. E de tão pouco musical, sendo para mim um extenuante desafio até batucar com os dedos numa mesa de bar em que ninguém está me ouvindo mesmo, sequer toco bem um apito, arriscando-me assim, se insisto em exibir dotes que não tenho, virtuosidade já viciada, a que ninguém me dê atenção; mesmo entrando com o apito na mão, arrisco-me a que ninguém me obedeça, ainda que ninguém mais possa tocá-lo.
De cara, não sou índio, embora, caído no mesmo caldeirão fervente das misturas, saído daí num caldo em que já não se reconhecem, individualmente, os ingredientes desse doce-DNA, deve haver algo de primitivamente selvagem em mim, assim a olhos que tomam por selva o que, narcisistas, não lhes surge como espelho, tanto quanto deve haver, ainda em mim, algo daquele ingênuo ridículo de, tendo acreditado na propaganda de uma moda que prega tudo misturar, me exibir de calção colorido (já cobrindo uma nudez envergonhada), camiseta de time de futebol (já cobrindo um peito sem ingenuidade natural), um boné de universidade americana, mesmo que não seja original (sabe Tupã cobrindo o quê: que se passa nessa cabeça?), ao mesmo tempo em que me mostro pintado, com uma maquiagem que transgride a noção “civilizada” de guerra, com sua pintura camuflada para, num mimetismo bélico, passar despercebido entre a folhagem da selva, escapando aos olhos inimigos: a pintura da hora é de um vermelho acentuado, de urucum sem rubor.
Para mim, qualquer desculpa (me) serve. Havendo motivo, por mais batido, por já quase esquecido, ponho-me a escrever, num transe sem bebida prévia. Para outros, para que me lê, isso deve ser, a qualquer dia, dia de índio, programa que poderia ser evitado sem que fosse preciso se pular o calendário das datas nacionais, apenas baseando-se em experiência passada, vislumbrando-se, já nas primeiras linhas, quando o apito ainda soa tímido, o que virá depois, apito à mão, sentindo-me dono dele, a ponto de tocá-lo de qualquer jeito, sem apurar o estilo, sem me preocupar com a harmonia, com a melodia, atendo-me, no máximo, a um ritmo rudimentar marcado por sopros regulares.
Meu dia, índio sem cocar, nasce com uma palavra – que nem precisa ser (dia de) “sol”. Minhas palavras – às vezes, arco no auge de sua tensão, noutras, flecha com intenção certeira, e que pode ficar só nas boas intenções, sem alcançar o alvo – não passam de “uma pena”: e se é possível reconhecer um índio com só uma, preferencialmente a lhe pontuar a cabeça, são mais reconhecidos os que, sem pena, desnudam aves coloridas às pencas. Minha pena não vai para as aves repentinamente desnudas, sequer para os índios extintos, mas tão-somente para a extinção das tintas que alimentavam as penas, restando só um fiozinho delas para um bico-de-pena que reproduz, com semelhança assustadora, um índio já sem contorno, um índio já com (tantos) limites, um índio com(o) reserva legal para a falta de outros motivos.
CHICO VIVAS
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