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sexta-feira, 16 de abril de 2010

DIA DA VOZ


É cada vez mais frequente se ver pessoas falando sozinhas; e mais, como que conversando, num diálogo aparentemente impossível, pelo menos quando a compreensão do mundo é mediada pelos limites estreitos da nossa percepção. E poderia dizer até que além de vê-las assim, é possível mesmo ouvi-las, pois, ainda secundado por minha limitada percepção, elas carecem bem mais de ouvidos que lhes deem atenção do que propriamente de um interlocutor, ainda que um daqueles, cada vez mais raros, que jamais interrompem, a não ser quando, atores corretos, percebem a deixa: e não é difícil entender que todo interlocutor quer também sua dose (ah! o prazer das doses assim!) de atenção, estando provavelmente aí a raridade dos que pacientemente ouvem, e continuam só escutando, se o outro ator não se mostra, querendo mostrar-se demais, igualmente correto e não lhe dá a deixa – e esta pode ser sutilíssima, antecipando mesmo, com a entonação das palavras, o calar-se a vir.


É assim! Por mais que isso pareça uma loucura. E nem essa tecnologia auricular para conversas a distância, mãos então desimpedidas, é capaz de, com desculpa aceitável, encobrir de todo a necessidade crescente de se fazer ouvir, independentemente do que se tenha a dizer – que isso não é assim tão importante: sempre será, para quem diz, ainda que, ouvido o mesmo de um interlocutor, dê mostras, pouco sutis, da desimportância daquele fato; e sempre será assim porque quem age desse modo jamais dará o braço a torcer (mesmo que já não precise dele para, a distância, falar, falar, falar...), e assegurará, até a morte, que o que diz é de suma importância, e tudo isso para não ver ameaçada sua independência, atirando luzes sobre essa sua dependência da atenção alheia.


Não deixa de ser curioso e engraçado. É curioso, quando se tenta adivinhar, analfabeto nessas leituras labiais, o que diz aquele que passa por nós, entabulando uma animada conversa, sabe-se lá com quem, talvez mesmo fazendo todas as vozes de uma roda inteira de amigos a distância, com os quais há muito não fala, nem a distância, quem sabe se porque ao falar-lhes, de perto, fale demais, e queira para si toda a atenção, não admitindo, com olhos recriminadores, que lhe interrompam. É engraçado quando, além daqueles movimentos dos lábios, numa sintaxe esotérica demais para quem exercita mais a própria língua do que os olhos, deitando-os, nem que seja de vem em quando, sobre a necessidade dos outros, flagra-se também um sorriso; mais: acompanha-se o próprio nascer desse sorriso, o seu florescer (às vezes, o sorriso morre aí, sem chegar a muito viver), até, e isso é o mais engraçado, atingir aquele estado de maturidade que o transforma quase numa gargalhada, a tempo contida, para não transparecer um descontrole que não combina mais com esse estado.


É possível que algum dia tenhamos imaginado que a tecnologia que une, a distância, mas não une as distâncias numa única proximidade, fosse capaz de suprir a falta de atenção que julgamos sentir. O que se vê (e quase se ouve) é que ela serve, no máximo, como uma boa desculpa para diálogos solitários – como este, meu, à mão livre!


CHICO VIVAS


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